Sobre esta assombrosa Sinfonia «subjetiva» ocorrem-me duas coisas: é mesmo uma sinfonia (tem a dignidade histórica que o género reclama, e simultaneamente dignifica o género) e é mesmo subjetiva, ou seja, é mesmo do APV, não podia ser de mais ninguém

“Este é o meu elogio ao António” por Afonso Miranda

Os elogios são, por vezes, ambíguos sobretudo neste mundo que os cultiva como forma automática de cortesia social. Se elogiamos a torto e a direito o elogio perde todo o significado, torna-se uma fórmula vazia. Tudo se resume à verdade, à sinceridade interior, à boa consciência do elogiador. Porque se não for sincero, o elogia deixa de ser uma forma de simpatia, de amor, ou seja, deixa de ser desinteressado, e passa sorrateiramente ao campo da bajulação, da lisonja, ou, mais inocentemente, da mera cortesia oca. Os nossos gostos definem-nos, dão-nos uma identidade, pertencem à nossa interioridade mais profunda… e mais suscetível. Há inclusive uma relação quase caricata entre o nosso gosto e os conflitos interpessoais que este despoleta. A maioria das zangas entre «amigos» dá-se geralmente por ridículas questões de gosto, sobretudo em pessoas dotadas de sensibilidade artística. Porque o gosto é uma forma de amizade, e a amizade alimenta-se da partilha de gostos comuns. Acho que foi o Montaigne que disse que o amigo é o outro eu. Acho que foi Bourdieu que disse que ficamos mais ofendidos quando atacam o nosso gosto do que quando ofendem a nossa mãe.Quando se elogia alguém há um influxo que passa do elogiado ao elogiador. De algum modo sentimo-nos elevados quando partilhamos a opinião de um «grande homem» ou de um «grande artista». Nalgum recanto ínfimo da nossa alma sentimos que somos iguais a esse artista. E vice-versa: sentimo-nos arrogantemente superiores a um artista de cuja obra não gostamos, mesmo que esse artista tenha uma obra e nós não tenhamos nada, exceto o nosso gosto.Nos elogios que fazemos, muitas vezes somos hipócritas, ou interesseiros, outras elogiamos sem a dignidade merecida, e de vez em quando somos inteiramente sinceros.

Este é o meu elogio ao António Pinho Vargas…Os artistas precisam de elogios. Não é apenas pela vaidade essencial, porque a há e não é pouca. Mas não se resume tudo a ela. O artista está sozinho, durante meses trabalhou recluso numa zona de interioridade que chega a ser abismal. O artista tem qualquer coisa a dizer (pelo menos espera-se que sim!) e quer partilhá-la. O artista arrisca, o artista expõe-se, expõe-se a si próprio no que tem de mais íntimo (e não só os românticos, mas qualquer artista), expõe-se ao olhar dos outros, à opinião dos outros, à má-fé dos outros, neste tanque de tubarões onde vivemos.

Para o artista, a obra é a sua segunda natureza, ou talvez mesmo a primeira. Kurtág dizia que para se chegar ao céu (da peça acabada, da interpretação de excelência) tinha que se passar pelo inferno. O público em geral só assiste ao céu…, à última etapa, ao dar à luz, ao concerto, que é também um acontecimento social, um espetáculo onde cada um vê e é visto…Bom, estive lá ontem, assisti a tudo com a pontinha de ansiedade que a estreia suscita: achei excecional e, porque não, tocante. Cumprimentei o António de passagem, laconicamente, porque nestas coisas as palavras são traiçoeiras, e desnecessárias.

Mas hoje, logo pela manhã, vem-me a coisa ao espírito, já com a distância de uma recordação, o começo de uma nostalgia: «grande concerto, grande música». Depois da série ininterrupta de obras-primas que o António nos tem dado nestes últimos anos, esta Sinfonia surge como um portento (a cereja no topo do bolo, como se diz na linguagem futebolística), e a confirmação absoluta de um estilo tardio ao qual, por mim, adiro sem reservas. Sobre esta assombrosa Sinfonia «subjetiva» ocorrem-me duas coisas: é mesmo uma sinfonia (tem a dignidade histórica que o género reclama, e simultaneamente dignifica o género) e é mesmo subjetiva, ou seja, é mesmo do APV, não podia ser de mais ninguém, com aquela poderosa força crepuscular e existencial a que as últimas obras nos habituaram.Não fosse pelo ridículo que tais juízos suscitam, não fosse o enorme respeito que sinto por alguns dos seus colegas, dizia-lhe sem reservas que se tornou no maior compositor português vivo, e um dos grandes do nosso tempo. Por isso, não digo…”.

Afonso Miranda, Março 2019. (Facebook).