Notas sobre Judas
…de nem tudo
são capazes os celestes. Pois são antes
os mortais que chegam ao abismo. Por isso é com estes
que se dá a viragem. Longo é
o tempo, porém, acontece
o verdadeiro
Friedrich Holderlin in Mnemósina,
Sinto-me obrigado a confessar (palavras ambíguas, estas) que o período de composição desta obra foi pesado para mim. Talvez porque a educação católica que tive, somada às leituras juvenis da Bíblia e aos valores judaico-cristãos da nossa civilização, tornam cada palavra do texto litúrgico plena de significações e possíveis interpretações que a vastíssima exegese bíblica e a enorme literatura sobre o episódio confirmam. Os textos biblicos tiveram uma gestação histórica diversa, longamente espaçada e o estabelecimento da dogmática canónica processou-se ao longo de vários séculos. As narrativas do Antigo e do Novo Testamento estão repletas de símbolos e a exegese necessária para a sua interpretação foi de certo modo a primeira prática hermenêutica. Inicialmente tinha colocado a hipótese de usar outros textos (António Patrício, Jorge Luís Borges) mas finalmente optei por manter apenas textos dos quatro evangelhos. Está lá tudo. O latim é uma lingua morta mas algumas das expressões do texto bíblico transformaram-se em referências permanentes do nosso universo de valores.
O recente regresso do sagrado tem produzido inúmeras obras com texto litúrgico que continuam a grande tradição da música sacra; Passio, Te Deum, Miserere, Requiem, De Profundis são alguns títulos de peças compostas maioritariamente por compositores religiosos, mas igualmente agnósticos, como Ligeti. As interrogações ontológicas não são exclusivo dos teólogos e as questões da morte, da traição, da culpa, da dúvida, do determinismo e do livre arbítrio são eminentemente humanas. Daí o peso.
Já falei e escrevi suficientemente sobre as minhas opções musicais para agora me permitir fazer como Wagner, que escreveu muito mais sobre as suas intenções do que sobre a sua técnica. Aliás não uso “técnicas”. Compôr é um processo complexo, um estar-lançado no qual surgem coisas, forças às quais se responde de alguma maneira. Este estar aberto para o devir, inerente ao processo criativo tal como o concebo, não exclui a consciência histórica dos chamados materiais (que cada compositor terá de maneira muito diversa) mas antes a desloca para fora do processo criativo enquanto tal.
É igualmente terreno o condicionalismo associado a esta encomenda para Coro e Orquestra. Na impossibilidade de usar solistas, por razões de ordem financeira, tive de procurar uma solução para as falas de Jesus e Judas. Optei no caso de Jesus por usar quase sempre vozes femininas como modo, sem dúvida arbitrário, de realçar uma qualquer noção de fragilidade humana. Não existe nenhuma especulação sexual ou transsexual nesta opção. Na fala do arrependimento de Judas “Peccavi, tradens sanguinem justum” há uma progressão gradual de uma voz (sopranos) em “peccavi” até às quatro vozes em “justum“. Isolei cinco cenas particulares e um epílogo, sendo a quarta e a quinta subdivididas em três “momentos”. Estas decisões de carácter formal sobre o enfoque musical, o núcleo texto/música determinante em cada um dos seis quadros, foram tomadas durante a composição. O sexto quadro, o Epílogo, a qua chamei “Scripturae” (cânone aeternum) constituirá uma espécie de caesura na obra. Contém duas frases de Mateus à volta do mote “tudo isto aconteceu para que se cumprissem as escrituras dos profetas”.
De facto, há dois milénios que Judas Iscariotes carrega o fardo da delação infame sem perdão. É a hipótese de isso estar tão determinado como a morte de Cristo, sem a ressureição e glória posterior, que torna a sua figura trágica no sentido que os gregos, com os seus deuses demasiado humanos, manipuladores do destino dos homens, davam ao termo. Jesus, por vezes demasiado humano (Pai, afasta de mim este cálice), traído por um dos seus escolhidos, igualmente com a morte sacrificial no horizonte, em nome da redenção dos homens, não é menos trágico, apesar da condição particular e ambivalente de Deus feito homem.
António Pinho Vargas
Agosto 2002
Video Naxos CD Requiem / Judas
https://youtu.be/eCBAHwN6HrY
Video Past Notes (Judas)
https://youtu.be/wzW5yblndug