Sobre Maurizio Pollini (1942-2024) vou procurar escrever tão próximo quanto conseguir dos patamares que ele estabeleceu para si próprio: no plano ético, no rigor e na profundidade.
Pollini começa com o seu mito. Tendo obtido o Primeiro Prémio do Concurso Chopin em 1960, em lugar de se lançar imediatamente na carreira internacional que o esperava, manteve-se a estudar mais alguns anos. Daí o seu primeiro disco para a Deutsche Grammophone ter sido apenas em 1971 com “Três Movimentos de Petrushka” de Stravinsky e a Sonata nº 7 de Prokofiev. Só nesta opção está expressa uma orientação que irá seguir em toda a sua carreira: tocar e gravar não apenas o grande repertório canónico do século XIX mas também música do seu (nosso) tempo. Assim no centenário de Schoenberg, Poliini tocou em Londres e gravou a celebrada integral de Schoenberg e mais tarde Berg, Webern, Boulez, Stockhausen e Nono. Claro que também os 5 concertos e as 32 Sonatas de Beethoven bem como muitas gravações de Chopin, Schumann, Liszt; Brahms etc.
Em 1971 Pollini, vivia ao mesmo tempo que Claude Lévi-Strauss, Barthes, Foucault, Deleuze e era amigo de Claudio Abbado e Luigi Nono. A noção de estrutura só lhe podia ser familiar e atraente. Esse Zeitgeist do pensamento e da arte musical dos compositores não podia deixar de ter sido marcante na sua abordagem das obras. Deste artista genial se escreveu um sem número de vezes que a arquitectura, a análise, e a estrutura eram centrais nas suas interpretações. Uma vez que em 1972 recomecei a estudar piano mais seriamente pude acompanhar o mito nascente, e os primeiros discos que eram recebidos por nós como versões “modernas” definitivas do repertório canónico: Chopin e os Études, ou as três últimas Sonatas de Beethoven, por exemplo. Os LPs que existem cá em casa mostram que entre nós, os estudantes de piano e de composição, Pollini e os seus amigos, Abbado e Nono eram um prolongamento de todos os aspectos daquilo que perseguíamos quase como ‘boa nova’ .
Como sempre acontece quando algum artista afirma não apenas uma qualidade extrema como igualmente um conjunto de ideias fortes associadas, não demora muito até que as ideias fortes se transformem em lugares-comuns na literatura que acompanhou a sua recepção crítica tanto em concertos como em discos. Algunas décadas depois dos heróicos anos 1970 comecei a reparar que era virtualmente impossível poder encontrar uma critica – uma que fosse, em francês ou português sobretudo, embora menos em língua inglesa – que não fosse parar à famosa arquitectura, à análise das obras, à clareza da estrutura. Estes conceitos estavam definitivamente colados à figura de Pollini. Por isso, é com redobrado prazer que da notícia do Público de hoje de Isabel Salema – onde aliás se voltam a manifestar estes aspectos colados à sua ‘persona’ pianística – posso citar uma frase do próprio Maurizio Pollini em 2002, claramente já reativo à visão estereotipada de si próprio, em entrevista a Cristina Fernandes:
“A minha aproximação à música é sempre global, no sentido em que todas as componentes contribuem para o todo. A arquitectura de uma peça é até um dos aspectos mais imediatos, mais óbvios, facilmente compreensível. Há muitos outros muito mais complexos de trabalhar, por exemplo, o carácter a dar a cada peça ou a cada secção. O que está para além das notas, das indicações da partitura, da estrutura, esse sim é o verdadeiro desafio.”
Deste modo afirmava, como verdadeiro desafio, “o que está para além…”
Uma justa auto-descrição de um artista mais-do-que-completo.
António Pinho Vargas 24-03-2024