Alguns parágrafos da Introdução do Capitulo I da tese Música e Poder (não sei bem porquê, ainda, mas tem-me surgido o desejo de reler a minha tese publicada na Almedina e desaparecida do mercado livreiro no ano seguinte à sua publicação em 2011, inclusive nas próprias livrarias Almedina (um fenómeno algo bizarro senão mesmo inexplicável):
“Uma das tarefas principais de uma investigação nas ciências sociais é a construção, em paralelo, tanto do objecto da análise, identificável numa pergunta e numa problemática, como da teoria analítica e da metodologia adequada à plena possibilidade da sua interpretação. Nesse sentido, nem a teoria antecede o objecto nem o objecto antecede a teoria. Verifica-se um permanente ir-e-vir entre as duas componentes. Neste caso, a definição dos conceitos capazes de iluminarem a temática da ausência da música portuguesa, a articulação entre si e em relação ao objecto, a gradual descoberta do carácter operativo dos conceitos em relação ao objecto complexo ocorreram em simultâneo com o aparecimento de aspectos insuspeitados no material empírico associado à temática.
Aquilo que por vezes é designado por ‘imaginação sociológica’ talvez consista justamente nesse processo, longo, trabalhoso mas necessário de integração progressiva entre determinados conceitos preexistentes, julgados úteis para esclarecimento da problemática, e aparições, por vezes fulgurantes, provenientes do material empírico que, de algum modo, forçam a busca de outros conceitos capazes de fornecerem hipóteses explicativas para zonas de penumbra.
A ausência da música portuguesa no contexto europeu constitui de certo modo um dado à partida, embora a sua dimensão e o seu alcance nem sempre sejam óbvios. Mas essa questão surge em vários textos, é referida como problema por vários autores e é verificável empiricamente sem grandes dificuldades. Não é aí, portanto, que se centra esta investigação. Partir desse dado e constituir uma problemática diversa, capaz de gerar novas perspectivas analíticas, era assim o ponto-chave da investigação. Não se tratava de confirmar a ausência, praticamente indiscutível embora muitas vezes oculta, mesmo entre os próprios agentes do campo musical, mas antes de a estudar numa perspectiva relacional alargada ao campo europeu visto como lugar de um determinado tipo de hegemonia; tentar inseri-la num quadro de relações de forças, de poder/saber, amplamente sedimentadas quer nos agentes, quer nas instituições activas no funcionamento de um campo artístico. Estudá-la igualmente de acordo com uma visão histórica do sistema-mundo –na fase actual do capitalismo global – à luz de novas teorias capazes de ultrapassar as perspectivas, sem dúvida importantes, pós-modernas e pós-coloniais, para chegar a um entendimento, através de homologias de vária natureza, dos processos históricos e ideológicos que sustentam, explicam e reproduzem a ausência. Estudar, por isso, os dados empíricos da ausência, a sua dimensão e os discursos correntes através de uma grelha analítica e epistemológica mais produtiva e imaginativa, em última análise, tentar ultrapassar a quase invisibilidade do problema da invisibilidade.
Passaremos à descrição das várias contribuições teóricas – por uma ordem que não coincide cronologicamente com a sua entrada ou adopção no quadro teórico – a que finalmente fomos chegando. Aborda-se em primeiro lugar o conceito de discurso proposto por Foucault, ou seja, enquanto prática que regula, organiza e reproduz a realidade que descreve (cf. Foucault, 2005) e a constelação poder/saber como articulação permanente entre o exercício de qualquer poder e de qualquer saber ou, por outras palavras, o facto de não haver nunca um poder que não pressuponha um saber, nem um saber que não se traduza numa forma de poder. (cf. Foucault, 1980) Para Foucault, trata-se de “procurar as instâncias de produção discursiva (que evidentemente também administram silêncios), de produção de poder (que às vezes tem por função interdizer), de produção de saber (as quais, muitas vezes, fazem circular erros ou ignorâncias sistemáticas)”. (Foucault, 1994a:18) Segundo o autor “é efectivamente no discurso que poder e saber se vêm articular” (ibid.:103) ideia fulcral que deve permanecer sempre presente ao longo da leitura de todo este trabalho.”

in Música e Poder: para uma sociologia da ausência da música portuguesa no contexto europeu. Almedina 2011.
p. 20-21

Seleccionei neste caso apenas 2 páginas. Escolho fragmentos que me parecem constituirem um bloco, um gesto, um pensamento talvez válido em si mesmo. Mas certamente que não irei colocar no Facebook as 530 páginas da tese. Tenho de permanecer lúcido (apesar da minha razoável loucura). Quase como danças curtas de uma enorme suite barroca na qual a forma como se escreve (música….) constitui um objecto de interesse….
Talvez o facto de ir lendo As Passagens de Paris de Walter Benjamin, uma apoteose de fragmento e de inacabado – conceitos que me são muito caros na música e no pensamento – o possa explicar parcialmente.