por LUCIANA LEIDERFARB, Expresso/Cartaz

Duas epígrafes abrem este livro: uma de Jorge Luis Borges sobre o que se deixa para trás; outra de Manuel Gusmão sobre a alegria enquanto princípio, mesmo que o mundo nos leve em sentido oposto. Ninguém diria que as páginas que se seguem são sobre música, entendida como núcleo gerador de ideias que põem em conexão campos diversos. António Pinho Vargas escreveu um livro, teve dois filhos – seus dedicatários -, e arriscamo-nos a suspeitar que plantou umas árvores por aí. Sobre Música, colectânea de ensaios inéditos, textos e entrevistas à qual se soma um catálogo das suas obras, é sobretudo um balanço, um acto de aceitação das escolhas feitas. Mas não só: trata-se de uma voz dissonante num panorama musical que tende para a autocomplacência e para a teorização abstracta, uma voz que critica num sentido positivo, à procura da compreensão dos processos que originaram actuais situações. Na secção dos ensaios focam-se várias problemáticas. Fala-se da noção de partitura como suporte apenas concretizado pela interpretação. Fala-se da pobreza que subjaz a palavra “definitivo”; do “grão” – conceito emprestado por Roland Barthes – enquanto grau de autenticidade do objecto sonoro; de Portugal e do seu nacionalismo (“uma tradição não se inventa, ainda menos se decide”). Como em digressão, vai-se tocando em pontos sensíveis: “a amarga queixa contra a falta de condições” típica do artista português, à qual Luigi Nono contrapôs a atitude dos compositores cubanos que “trabalham com o que têm” , serve de exemplo. Avança-se nos textos, e as interrogações sucedem-se. Quanto à pedagogia da composição, defende-se que o professor não deve transmitir uma estética mas ajudar o aluno a “saber como é que a peça foi feita”. Por fim, aborda-se o tema dos cânones culturais, a propósito da “internacionalização da música portuguesa” apregoada pelos governos. O autor tenta descobrir “os critérios que transformam outras culturas em hegemónicas” e conclui que a internacionalização – que passaria por furar estes centros – é um processo perigoso e ilusório. Quer Portugal, como periferia que é, constituir um “novo centro irradiador”? Ou apenas ser absorvido pelos centros dominantes? “A maioria dos programadores prefere apostar em valores seguros do cânone do que arriscar quaisquer rupturas”. Após dois artigos sobre o pensamento de Adorno, chegamos às publicações de António Pinho Vargas em jornais e às entrevistas que lhe fizeram – a primeira de 1983, a última de 2001. Considerações à margem, em letra mais pequena, permitem uma constante actualização do discurso. De vez em quando, uma frase que revela o lado de espadachim solitário ou Quixote de Pinho Vargas: “Não deixa de ser cómico, se não fosse triste, ouvir compositores com responsabilidades queixarem-se da ausência de colegas e alunos nos concertos quando eles próprios só vão aos concertos em que participam…” A linguagem, clara, e as ideias, incisivas (com uma longa reflexão por detrás), fazem deste livro um objecto que apetece ter na estante. Para os que, tal como o autor, gostam de ir às causas, não se ficando pela vazia constatação dos efeitos.

LUCIANA LEIDERFARB, Expresso/Cartaz