Raúl Vaz Bernardo, Expresso – Cartaz

A geração de músicos a que pertencem Rão Kyao e António Pinho Vargas impressiona, hoje em dia, mais pelas suas faculdades extraordinárias de composição do que pelas suas habilidades instrumentais. E se Rão Kyao autoriza a dispersão da sua imaginística melódica pelos sons mais ou menos fáceis de uma orquestra com predominância de cordas, António Pinho Vargas opta por uma hiperconcentração melódica através do som do seu quarteto. Como já o seu anterior trabalho deixava adivinhar, a música de A.P.V. é um mosaico intenso de núcleos melódicos cuja validade é estabelecida pela personalidade do autor.
Cores e Aromas é uma obra que impõe a sensibilidade e imaginação de A.P.V.; não é uma obra desgarrada de encomenda como o seu trabalho de Verão para a Gulbenkian, é o destilar de um processo criativo ao alcance de poucos músicos. A proliferação de células melódicas constitui a autêntica estrutura de cada peça, a sua poética e tristeza são a tradução dum estado criativo de extrema sensibilidade.
Não se pode ouvir Cores e Aromas com a mesma receptividade com que se apreende uma obra de jazz, tudo lá está, a introdução, quantas vezes em magníficos uníssonos António Pinho Vargas-José Nogueira (piano-saxofone), desenvolvimento-improvisação e volta à substância temática. Mas quem não sente a unidade de forma que subjuga a compartimentação, como se um aroma de envolvimento se soltasse da realidade musical? Atente-se no extraordinário diálogo entre os quatro instrumentistas, cada um destacando-se, cada um apagando-se submissamente à dominância tonal, cada músico centro e periferia da combinação dos sons.
Todas as peças de Cores e Aromas se integram no plano de A.P.V. exceptuando talvez ‘Atmosfera’. Esta composição, dedicada a John Coltrane, escapa ao ambiente nostálgico prevalecente na obra e irrompe com uma energia que a aproxima mais do jazz. A temática lembra mais Tyner do que Coltrane e António Pinho Vargas sola com uma exuberância ‘tynerista’ deliciando-se com combinações de pentatónicas que recordam o extraordinário pianista. A secção rítmica também funciona com uma esquemática e dinâmica mais tradicional. Não contrastando em Cores e Aromas, esta ‘Atmosfera’ assinala a origem e amor ao jazz que o quarteto de A.P.V. conserva.
Não referir as influências que jorram da música de António Pinho Vargas, de Keith Jarrett a Chick Corea, seria incorrecto. É útil, também, assinalar a forma íntegra e sensível como este músico absorveu essas influências de forma que, combinadas com a sua personalidade e crescente bagagem académica, originou a mais bela música portuguesa de 1985, todos os géneros incluídos.
Um quarteto é um conjunto de quatro músicos. Para além do mencionado A.P.V., um José Nogueira aos saxofones cada dia mais dominador, um intuitivo de espanto nos tambores e cimbalos, Mário barreiros, e um sóbrio e envolvente Pedro Barreiros no contrabaixo. Um autêntico quarteto, em som e concepção.

RAÚL VAZ BERNARDO, Expresso – Cartaz