Pode uma obra multifacetada conquistar uma só plateia? Quando em causa está António Pinho Vargas, a resposta é sim. Porque, para além dos percursos e derivações que vão do jazz à música erudita, está a atitude individual de um dos mestres da música portuguesa contemporânea. Anteontem, os portugueses tiveram a prova num concerto inesquecível. É sempre com inusitada expectativa que se aguardam os concertos do pianista e compositor António Pinho Vargas, mas depois do que se passou na noite de anteontem, no teatro nacional São João, no Porto, todos os reptos, esperas e prognósticos deixaram de fazer sentido. O espectáculo, que repetiu a proposta do Coliseu de Lisboa, revelou-se como um daqueles momentos que se julgam irrepetíveis, e mesmo que os desígnios do imprevisto não possam nem devam deixar de reinar sobre todas as actuações ao vivo, Pinho Vargas ultrapassou os limites da expectativa. E criou um dos momentos mais altos da recente história musical da cidade. Pinho Vargas pianista, compositor, homem e músico eternamente inquieto na sua constante procura de novos caminhos, de novos sons e estéticas, fundiu-se numa imagem só, nas mais de duas horas que durou o seu concerto. Do jazz às canções líricas, das composições eruditas à paixão subjacente da memória musical da tradição portuguesa, tudo esteve presente sem que a abrangência das propostas alguma vez forçasse o banal ou o excessivo. O músico António Pinho Vargas, o homem e cidadão cuja obra revela a mesma atitude política de quem ‘luta contra a barbárie’, não cederam ao egoísmo ou à vaidade sempre possíveis num concerto autobiográfico. Sempre, sempre acima de tudo esteve o valor e a paixão do seu trabalho. Não admira, por isso, que uma das maiores dificuldades que o seu concerto oferecia à partida – agradar aos vários públicos que se albergam na sua música – se tenha saldado por um acolhimento unânime, expresso em longos minutos de sentida ovação. Mesmo que por cá subsista o hábito de ‘meter em locais diferentes as diferenças da música’, como reconhece Pinho Vargas, os vários extractos culturais presentes no velho São João souberam distinguir o todo das partes. Remetidas as filiações para plano secundário, em boa parte devido à inexcedível autenticidade das várias facetas do autor, o que acabou por vingar foi uma obra que obedece antes de mais aos princípios de honestidade e rigor. A começar esteve o jazz da primeira fase da carreira, num quarteto-base em que Carlos Bica substituiu Pedro Barreiros, oportunamente acrescentado pelo trompetista , que em meia dúzia de acordes – principalmente em ‘Ornette’ – mostrou ser um dos sopros mais qualificados do jazz nacional. Vieram as canções maneiristas a lembrar imagens de infância e com elas uma cumplicidade que fará parte integrante da imagem do pianista: José Nogueira, nos saxofones, é como um prolongamento da arte de Pinho Vargas, e é aqui que reside a sua maior qualidade como músico. Depois veio a música erudita, de novo as canções em duo com Nogueira, até à apoteose do fim. Pinho Vargas revelou que há muitos anos procurava um trabalho em conjunto com Maria João. Anteontem, compreendeu-se enfim a razão da insistência. Em ‘Lindo Ramo Verde Escuro’, em ‘Cantiga para a Maria’ e, principalmente, em ‘Vilas Morenas’, aconteceram momentos supremos da música portuguesa actual. Se a coerência do trabalho conjunto de Pinho Vargas com Mário Barreiros, Carlos Bica e José Nogueira é dado adquirido há muito, a voz abrasiva e a técnica original do ‘scat’ de Maria João adicionaram-lhe uma chama que deixou surpreendida a plateia. Um concerto inesquecível de um dos grandes mestres da música em Portugal.
Manuel Carvalho, Público