Cristina Fernandes, Ypsilon, p.36, Público, 10 de Outubro 2008
A dor e a angústia em retratos musicais
Três obras fundamentais de António Pinho Vargas
Uma profunca coerência atravessa as obras registadas no último CD de António Pinho Vargas na sua vertente de compositor de música erudita contemporânea. Esta diz respeito não só à concepção individual de cada peça, mas também à forma como estas se articulam num arco que tem no centro aquela que é uma das criações maiores da sua maturidade artística: “Six Portraits of Pain”, uma encomenda da Casa da Música para a sua abertura em 2005.
Interpretada pelo Remix Ensemble, é precedida pro “Graffiti [just forms]” e seguida por “Acting Out”, resultantes de encomendas do teatro nacional de São Carlos para a Sinfónica Portuguesa, mas aqui interpretadas pela Orquestra nacional do Porto, agrupamento residente na Casa da Música que financiou a edição no ambto do seu 3º aniversário.
Todas as obras recorrem a solistas de maneira explícita (o violoncelo em Six Portraits of Pain; o piano e a percussão em “Acting Out”) ou implicita, como no caso de Graffiti [just forms] onde Pinho Vargas tira partido da “voz propria” de vários instrumentos, mas não há um tratamento concertante ou virtuosistico no sentido tradicional. Os solistas são tratados como entidades de forte personalidade mas o que se evidencia na maioria dos casos é o seu potencial introspectivo. Em Acting Out obra de ressonancias psicanalíticas aperfeiçoada pelo compositor após a sua estreia em 1998, o pianista Miguel Henriques e a percussionista Elizabeth Davis têm prestações eloquentes mas é a escrita para violoncelo e interpretação notável de Anssi Kartunnen em Six Portraits of Pain” um dos elementos mais impressionantes da gravação. A prestação do Remix Ensemble, com a sua sonoridade cristalina e texturas meticulosamente esculpidas, é também responsavel pelo grande impacto desta obra “habitada por textos de Espinosa, Thomas Bernard, Manuel Gusmão, Anna Akhmátova e Paul Celan , que expõem diversos tipos de sofrimento existencial. Com a excepção do poema de Akhmátova, ddito pelo proprio Pinho Vargas, os restantes encontram-se apenas escritos na partitura. Não são recitados, nem cantados, afastando-se assim de uma relação linear ou programática com a música. A obra é percorrida por uma angustia e tensão imensas, com alguns laivos de pós-expressionismo, mas a tradução de estados de alma intensos e de paisagens sonoras inquietantes não fica presa a formulas estereotipadas do passado, sendo antes desenvolvida através de uma manipulação livre e imaginativa do material musical. A relação descomplexada com “objectos musicais” diversos e a tensão angustiada, evocadora da melancolia do artista, são marcas do percurso de Pinho Vargas nos ultimos anos que mergem também das restantes peças, incluindo Graffiti (just forms), concebida como uma espécie de “exercicio/estudo” sobre a questão da forma e recorrendo a agregados sonoros simples em alusão aos Graffiti na sua versão gráfica de arte marginal.
Cristina Fernandes, Ypsilon, p.36, Público, 10 de Outubro 2008