Lamentos podem ser choros, mas também podem ser queixas. O título do novo disco de António Pinho Vargas sugere que há um traço comum nas três obras que ali se fixaram: lamentos por algo que se perdeu? Ou serão protestos, porque as coisas deveriam ser doutra forma?
Lamentos
Autoria: António Pinho Vargas
Orquestra Metropolitana de Lisboa
Direcção: Pedro Neves
Viola: Joana Cipriano
Violino: Ana Pereira
Editora: Artway Records
Lamentos foi gravado em Maio deste ano, no Centro Cultural de Belém. A gravação (de estúdio e não ao vivo) foi dirigida por Hugo Romano Guimarães, num trabalho muito bem conseguido: não é simples gravar uma orquestra, é preciso gerir muitos equilíbrios, mesmo que o bom trabalho da Orquestra Metropolitana de Lisboa (OML), dirigida por Pedro Neves, tenha sido meio caminho andado.
O disco abre com Sinfonia (subjectiva), composição para orquestra estreada em 2019. A justa interpretação da OML revela-lhe bem a estrutura e todas as nuances. Estrutura convencional de sinfonia, em quatro andamentos. Um “diálogo com a tradição”, como assume o próprio autor nas notas do livrete. Mas algo de menos comum perpassa entre estes andamentos.
O primeiro (Sulla violenza) é colorido, vibrante, com abundante percussão. Ao centro, uma melodia nas cordas, como um canto, interrompe a violência que prosseguirá na segunda parte deste andamento, que termina desolado, como quem vê os destroços num campo de batalha. Deste lamento emerge Elegia (d’amore), que começa com elementos musicais por resolver e que repegará no mesmo tema das cordas para desembocar finalmente numa zona mais claramente elegíaca, simples, límpida. Mas uma sombra de inquietação não desaparece. Dessa sombra ressurgirá o apelo rítmico que traz novas cores, com frescura. Entrevê-se a ironia do título – ou será um jogar às escondidas? E, contudo, no final, o lamento permanece.
Porque põe Pinho Vargas este “subjectiva” no título da sua sinfonia? Talvez simplesmente porque a afirmação da subjectividade seja ainda, para o compositor, uma esperança, um acto de resistência a um mundo em que o “objectivismo” e o “realismo” fazem tantos estragos, na arte, na economia, na política, na relação entre os seres humanos. Nalguns gestos podemos ver gritos de dor, mas serão só as cordas (interiores) de um ser humano feitas sopros e violinos. E a possibilidade de entrever uma beleza futura.
A linguagem do Concerto para viola, obra de 2016 encomendada e estreada pela violetista Diemut Poppen, é uma ponte de outro tipo com a tradição – a do concerto para solista e orquestra. O seu fundo, para além das próprias potencialidades sonoras da viola, é uma dúvida fundamental, a partir do bíblico livro de Job, o homem que não entende o que Deus lhe fez e põe em dúvida a sua fé de forma radical. Peça de desencantos, zangas e hesitações, encontra a coerência num certo modo de pensar para onde vai: de uma bela passagem com harmónicos da viola do segundo andamento até gestos quase dançados do último Dúvidas e fúrias, até ao seu agudíssimo final, sempre brilhando na gravação a intérprete Joana Cipriano.
Lamentos de António Pinho Vargas: uma ética que se ouve
O Concerto para violino é dedicado ao violinista Gareguine Aroutionian e foi estreado por Tamila Kharambura em 2016. Mas aqui quem o toca é Ana Pereira, concertino da Metropolitana, que fez um trabalho de alto gabarito. Pinho Vargas estende-se em melancolias no primeiro andamento, mas deixa outras cores entrar no vivo segundo andamento, por exemplo. Mais uma vez, a proposta principal não é a de propor à escuta coisas inauditas, mas a de deixar ressoar uma outra ética para o ser humano.
Pedro Boléo, Ípsilon, Público 20 de Dezembro de 2023