Este livro apresenta na primeira pessoa, um dos músicos portugueses mais influentes dos últimos 30 anos.
O que este livro traz de novo é o facto de reunir vários ensaios inéditos, nos quais António Pinho Vargas funde, de uma forma ao mesmo tempo leve e problematizante, a análise da sua experiência enquanto músico multifacetado (compositor, intérprete, professor, decisor cultural) com a integração da música no seio de algumas das tendências académicas mais fecundas dos últimos anos. Começando pelo fim, é de saudar que, pela primeira vez, tenhamos disponível em língua portuguesa e graças ao esforço exclusivo de uma editora comercial uma obra sobre música que se fundamenta em vários dos autores que, nos últimos anos, têm renovado de forma notável as perspectivas metodológicas e temáticas no mundo académico das Ciências Humanas, e, mais particularmente, no das Ciências Musicais. Olhando para a bibliografia que completa o primeiro livro assinado pelo compositor António Pinho Vargas, descobrem-se, entre outros, os nomes de Walter Benjamim, de Michel Foucault, de Frederic Jameson e de Boaventura de Sousa Santos, juntando estes aos de vários estudiosos que podem ser enquadrados na corrente habitualmente denominada ‘Nova Metodologia’, entre os quais se poderiam contar autores tão diferentes entre si como Joseph Kerman, Susan McClary e Nicholas Cook. É que, se bem que o livro em apreço seja também importante pelo facto de apresentar, na primeira pessoa, um dos músicos portugueses mais influentes dos últimos 30 anos, ele é sobretudo fundamental porque poderá marcar o início de uma nova fase no que diz respeito ao debate sobre música em Portugal.
Salvo erro, esta é a primeira vez que se lança publicamente em Portugal, e ainda por cima de forma ‘politicamente incorrecta’, a discussão demorada acerca de temas centrais para o entendimento da música dos últimos 50 anos. Entre eles, encontramos os seguintes: as relações entre o erudito e o popular; o estatuto da análise nos estudos musicais superiores; a conformação do ‘canon’ na música; e a influência do pensamento de Theodor Adorno no discurso dominante sobre a nova música. Por detrás de todos os ensaios, encontra-se um autor atento e perspicaz, que apresenta novas perspectivas para a discussão sobre os temas antes referidos e que argumenta com simplicidade, como que convidando o leitor para participar numa conversa que se poderia ir prolongando até às tantas. São especialmente interessantes os artigos relacionados com as diversas maneiras possíveis de perceber, de ensinar e de analisar a música. Aqui o autor desconstrói alguns dos mitos associados à prevalência do carácter necessariamente científico dos discursos sobre a música. Desenvolve aliás um tipo de reflexão, simultaneamente teórica e prática, que, em certa medida, se estende à sua leitura do pensamento musical de Adorno, a cuja recepção no âmbito da música contemporânea Pinho Vargas dedica dois esclarecedores ensaios.
Encontram-se alguns detalhes menos cuidados que revelam uma certa impaciência intelectual e que, embora possam não ser demasiado graves num ensaio, o género escolhido pelo autor, deveriam ter merecido da sua parte uma abordagem mais prudente. Contudo, mesmo estes elemntos mais criticáveis são interessantes pela reflexão que suscitam. Por exemplo, na sua interpretação das posições assumidas pelo compositor Fernando Loes-Graça, em relação à questão do ‘fado como canção nacional’, Pinho Vargas aborda indiferentemente textos da década de 30 e da década de 60: passa da crítica ao filme ‘A Severa’ (de 1931, quando Lopes-Graça ainda não era membro do PCP) para entrevistas dadas 30 anos mais tarde, explicando os argumentos do compositor como um exemplo da ‘desconfiança dos comunistas em relação à cultura urbana’ (p.20). Apesar de alguns dos ingredientes necessários para entender a posição de Lopes-Graça possam, eventualmente, passar por aí, seria preciso um maior esclarecimento acerca das circunstâncias em que a ‘cultura (musical) de massas’ se consolidou em Portugal (uma investigação que, é certo, está em grande medida por fazer), assim como acerca da natureza exacta das diatribes do compositor tomarense contra o fado (mas também contra os ranchos folclóricos).
Outros exemplos do que foi dito podem ser retirados do ensaio ‘Cânones Irregulares sobre o Cânone’. O conceito de ‘canon’ é muito útil para perceber certas estratégias de hegemonia e contra-hegemonia cultural, próximas, até, dos efeitos de um certo colonialismo racista (é bem sabido que Portugal é terra de poetas, mas não de compositores…), nas quais a música tem um papel preponderante. Pinho Vargas tira partido disto no seu texto, aplicando o conceito à reflexão acerca do estado actual de difusão da música portuguesa. Contudo, uma abordagem de carácter mais histórico poderia ter esclarecido bastante mais as coisas, sobretudo porque teria feito perceber o carácter cambiante dos conteúdos que têm preenchido, ao longo do tempo, o ‘canon’ musical do Ocidente. Neste sentido teria sido, por exemplo, muito útil que Pinho Vargas tivesse feito a distinção entre ‘canon’ e ‘repertório’ (sendo que chega a confundir intencionalmente as duas coisas, p.89). Mais ainda, a leitura do texto faz com que se coloque a questão da pertinência do conceito para referir a actual situação da música contemporânea, mas este é um assunto que ultrapassa os limites de uma recensão.
O livro mostra ainda uma notável coerência, reflectindo a permanência no tempo de certas preocupações no autor, nas quais o musical é transferido para as esferas do cultural e do social. No entanto, teria sido plenamente justificada uma decisão editorial diferente, de forma a ver distribuído o seu conteúdo em dois volumes. A primeira poderia ter reunido, de forma natural, os referidos ensaios inéditos, os quais ocupam as primeiras 150 páginas do livro e os comentários do compositor a propósito das suas obras. As entrevistas e as 30 pequenas histórias autobiográficas poderiam ter feito parte de um segundo volume. Esta segunda secção revela a faceta mais exposta publicamente do autor e, como era de esperar dada a sua origem jornalística (no caso das entrevistas), lê-se com facilidade e interesse. Foram acrescentados comentários posteriores, redigidos especialmente para esta edição e graficamente diferenciados, onde são de novo abordados muitos aspectos da vida musical portuguesa na actualidade. A notável personalidade de António Pinho Vargas acaba por ser o elo que unifica estas duas partes, mas, mesmo assim, elas não deixam de apresentar-se como secções plenamente autónomas. De resto, a decisão de reuni-las é também coerente com o percurso de compositor e com o seu aparente propósito de ir desenvolvendo uma nova via de intervenção artística que supere a divisão – ‘the great divide’, nas palavras de Andreas Huyssen, um dos autores discutidos por Pinho Vargas no seu livro – entre duas classes de discurso, um mais erudito e académico e um outro mais funcional e imediato.
Há um momento no livro no qual António Pinho Vargas rememora um episódio ocorrido na década de 70 afirmando, voltados 20 anos, que sempre teve a insensatez de levar a sério tudo o que os outros lhe diziam. O certo é que, já em 2002, é de aplaudir a sua insensata vontade de continuar a levar a sério o que os outros dizem e, sobretudo, de discuti-lo de forma muito directa e, por vezes, apaixonada. Sobretudo porque o que ele faz é questionar numerosos aspectos da criação musical dos últimos 50 anos que, quando aceites sem reflexão, representam um tipo de bom-senso tão prestigioso quanto estéril.

TERESA CASCUDO, Público