Onze Cartas de António Pinho Vargas
A primeira parte apresentava uma obra nova, estreada em Outubro na Casa
da Música, no Porto, e agora refeita no S. Carlos, em Lisboa. Chama-se
Onze Cartas e é uma interessante reflexão sinfónica sobre a criação
artística, escrita por António Pinho Vargas. Uma obra para orquestra
sinfónica, electrónica e três narradores pré-gravados. Onze Cartas que
merecem leitura atenta. A partir de textos de Italo Calvino, Jorge Luis
Borges e Bernardo Soares, o compositor procurou fazer “uma espécie de
sinfonia-ópera ou ópera-sinfonia que na verdade acabará por ser uma
coisa Outra”, como escreve Pinho Vargas no programa do concerto. Coisa
outra, onde se sente a presença de uma voz orquestral própria: ali
coexistem texturas tensas e intensas fracturas, a presença da palavra e
intervenções pontuais da electrónica, numa conjugação original que
integra coerentemente os diferentes meios, produzindo assim um “texto
musical” aberto ao que de novo pode vir a ser (na obra, no mundo). Uma
música com pontos de interrogação, cortes, mas também melancólicas
continuidades. Uma composição que tem perguntas lá dentro… sobre os
próprios caminhos da obra. Os textos dos três escritores (textos sobre o
próprio acto de escrever, as possibilidades, os conflitos, as razões,
as contradições da criação) surgem sobre o som de uma grande orquestra,
com variadas percussões e um alargado conjunto de metais. E aqui a
orquestra mostrou-nos com clareza suficiente a “interrogação forte” que
constituem estas Onze Cartas.
O
que é escrever? O que é possível escrever? Por que se escreve? E o que
fica do que se escreveu? Pinho Vargas escolhe autores contraditórios, e
eles dialogam no interior da obra. As filosóficas melancolias
(investigações interiores do homem e do texto) de Bernardo Soares (lidas
por Pinho Vargas, o autor da música, o que agrava o efeito de
auto-reflexão da obra) estão distantes do esforço de rasgar horizontes
largos (exteriores) de Borges ou da clareza materialista e aberta ao
mundo de Italo Calvino, o escritor cujas palavras inauguram a
“conferência” musical que Onze Cartas também é. Mas do diálogo entre os
três nascem luzes e sombras que a música, embora num outro plano,
integra com a sua reflexão própria, sonora, com a sua poética do
inacabado e da “falha”. Até chegarmos a um momento-chave, na voz de
Pinho Vargas lendo Bernardo Soares: “Por que escrevo então? Porque ainda
não aprendi a renúncia.” A música responde numa passagem com enorme
força, em que a desistência se transforma em existência, em que a dúvida
se torna possibilidade de resposta, em que a melancolia se faz
esperança em acção. Sim, vale a pena compor.
Pedro Boléo, Público, P2, 26-11-11 p.10