Maria Gonçalves de Sousa, in JL

Cruza-se o tempo, cruza-se Abril e a suspensão do próprio tempo. Os Dias Levantados, de António Pinho Vargas trazem uma verdade histórica, sob o seu olhar, trazem factos. Trazem memória de antes e depois de Abril, o movimento do mundo, naquele instante, naquela sucessão de instantes que converge para o “dia inicial… onde livres habitamos a substância do tempo”. Os Dias Levantados habitam-no por inteiro, com o libreto de Manuel Gusmão e a música de António Pinho Vargas. Assim, em conjunto. Cruzam olhares, palavras, citações, não apenas literárias. Logo no início, dão corpo e voz à lição de Walter Benjamin: é pelas histórias que a experiência do mundo se transmite. E a eperiência do mundo existe n’Os Dias Levantados. O que faz desta ópera um objecto magnífico, belíssimo.
O cruzamento do texto e da música, como agentes de drama, é constante e são também constantes os desafios que esta interligação levanta. Basta a sequência de cenas, na primeira secção, O Salto do Tigre a Céu Aberto, para se pressentir a dimensão da obra: tudo o que compõe o interrogatório da PIDE ou o cenário de guerra, o massacre; tudo o que se encaminha para “o rio do tempo” e desagua no coro de Fernão Lopes “a gente começou de se juntar”, para então fazer sentido a substância do “dia inteiro e limpo” de Sophia de Mello Breyner Andresen. Siga-se a importância das cordas, dos sopros, das percussões, das vozes, daquelas vozes, a importância do coro, a sua diferenciação, o peso e a razão de cada solista. Repita-se o exercício nas Três Irmãs, na Cidadania Limiar, em Il Combattimento, no êxodo. E Os Dias Levantados revelar-se-ão em texto e música. Isto é, em música, em drama, em ópera.
No programa da estreia, no Festival dos Cem Dias (1998), António Pinho Vargas escreveu: “O 25 de Abril foi ilegal, indisciplinado, incoerente, injusto, insuficiente, por vezes ridículo, mas maravilhoso e inesquecível. Gostava que a minha peça, que tem certamente todos estes defeitos, tivesse algum rasto destas qualidades”. Na sua “impureza”, nas muitas fontes que congrega, tem todas as qualidades. Tem, na sua própria verdade, a capacidade de invocar o invocável, desarmando-nos perante a memória, as escolhas que fazemos e com as quais vamos decidindo o que somos. “Não acabou. Há mais coisas a escrever. Esta escrita vai durar”, ouve-se no Êxodo, que conclui Os Dias Levantados. Porque, como desde o início sabemos, “somos todos judeus alemães e palestinianos de Jerusalém”. E somos todos, também, Corpo-Delito na Sala de Espelhos, como José Cardoso Pires e Eduardo Lourenço (em prefácio), um dia ousaram escrever.
N’Os Dias Levantados, há muito a ter em conta. Há ainda as vozes de Ana Ester Neves, Ana Paula Russo, Jorge Vaz de Carvalho, Luís Rodrigues, Nicolau Domingues. Há a direcção de João Paulo Santos. E o ponto de partida: a encomenda de António Mega Ferreira, então comissário da Expo 98, a António Pinho Vargas. A gravação (ao vivo, excelente), sem certeza de edição, veio do risco assumido pelo compositor e pelo técnico José Fortes. A substância de Abril é feita de escolhas.