Augusto M. Seabra, in Público
É uma ópera que evoca o 25 de Abril. É a primeira ópera portuguesa do século XX a ter edição discográfica. Os Dias Levantados, com texto de Manuel Gusmão e música de Pinho Vargas, é uma reflexão contemporânea.
Enfim!
Enfim era tempo de ser de novo tempo de “Os Dias Levantados”. E assim é pela primeira vez editada em disco uma ópera de autor português do século XX. Não é que sejam muitas, e muito menos de relevo, mas ainda assim existem (e há pelo menos “A Trilogia das Barcas” de Joly Braga Santos e “O Doido e a Morte” de Alexandre Delgado das quais se justifica serem montadas, gravadas e editadas), e o facto por si só é de enorme relevo, sabendo-se da prevalência de discursos patrimoniais que de facto descuram as questões fulcrais dos modos de circulação de bens culturais, nomeadamente contemporâneos.
Mas o facto é tanto mais relevante pela obra em si. Há aliás já um rasto de “Os Dias Levantados”, sendo que a sua recepção crítica (com e sem aspas, diga-se) se configura como um “case study”, que aliás deflagrou nas páginas deste jornal e nelas aliás tem várias vezes continuado.
Não imortando aqui e agora as razões que levaram outras pessoas do ofício composicional a manifestar-se contra a obra, ou talvez mais exactamente contra a encomenda da Expo-98 a Pinho Vargas para o Festival dos 100 Dias, será no entanto importante reter dois factores, ambos muito disseminados: 1) uma certa incompreensão do libreto (a meu veu sumamente inteligente e admirável) de Manuel Gusmão e, mais ou menos correlativamente, 2) uma diferente percepção do referente histórico do 25 de Abril de 74. Façamos então um pouco de história.
“Os Dias Levantados” surgiu como um objecto paradoxalmente anacrónico na sua relação com um facto histórico recente e como tal ainda de actualidade nas memórias e imaginário colectivo, o 25 de Abril de 1974. Alegorias operáticas celebrativas eram hábitos dos poderes régios dos séculos XVII e XVIII, não propriamente dos regimes democráticos. Tal como música celebrativa e glorificadora a exigiu o estalinismo (e Prokofiev e Chostakovich contribuíram para a “causa”). Mas a quem ocorria hoje uma encomenda de ópera em tais termos? Recentemente, só me ocorre o caso de “The Voyage” de Philip Glass para o 5º centenário da chegada de Colombo à América e esse, Glass, na verdade faz óperas sobre qualquer pretexto, talvez até sempre a mesma nos tempos que correm.
Contudo, esta situação de excepcionalidade, que se prende com a aura particular do objecto “ópera”, terá de ser equacionada atendendo a que de facto o regime de encomendas é generalizado na produção musical contemporânea e sempre se regista em acontecimentos particulares; por exemplo, outras encomendas a compositores portugueses foram feitas quando da Expo-92 de Sevilha, de Lisboa-94 ou do Porto-2001.
Colocados os concretos termos da encomenda (uma “invenção” de António Mega Ferreira, cabe recordar), se eles poderiam ser particularmente mobilizadores, o certo é que era enorme o risco de, até apesar deles próprios, os autores se verem confrontados com a condição de codificadores de uma “história oficial”.
A hipótese que pretendo colocar é a de que em larga medida as reacções mais reservadas em relação à obra, que se condensaram fundamentalmente em relação ao libreto, derivam do facto de a obra precisamente ter uma “verdade” própria (no sentido adorniano da “verdade da obra de arte”) que escapa à reiteração de uma “história oficial” e que, paralelamente, essas reacções indiciam a forte presença nas memórias e imaginários do significante “25 de Abril”, em função do qual muitos tiveram tendência a ser reservado face a um entendimento de que o “25 de Abril” na obra não é o “seu”.
Ocorrerá também, mais prosaicamente, que o horizonte de expectativas criado fizesse intuir que em palco houvesse uma representação dos eventos conhecidos, não apenas o único confronto esboçado, no Terreiro do Paço (esse até figura), mas os do Quartel do Carmo, etc. No fundo, é sempre a expectativa de uma superprodução americana!
Mais intrigante, mesmo muito, é que ao libreto se censure a coralidade e as vozes expressando diferentes pontos de vistas, e sobretudo que o libreto de uma ópera contemporânea seja em si mesmo uma obra contemporânea e reflexiva! É preciso ignorar o que não o pode ser, exemplos maiores como “Os Soldados” de Zimmermman ou as obras teatrais de Nono, para pretender como postulado absoluto que um texto de uma ópera contemporânea é apenas um instrumento narrativo linear e não também um modo de reflexão histórico-estética! Que haja espectadores que assim o entendam, para mais num país onde raramente se vê ópera contemporânea, compreende-se; que vozes que são supostas serem reconhecidas como de saber crítico o insinuem, levaria a outros qualificativos.
Importará assim notar que o texto de Manuel Gusmão, tal como o autor o entendeu na sua integralidade, existe publicado autonomamente (Ed. Caminho), noutra manifestação da “excepcionalidade” do objecto, mas receando eu que tenha sido encarado como um objecto “híbrido” e como tal sem uma recepção crítica e pública autónoma.
E, sobremaneira, importa realçar que Walter Benjamin é a figura tutelar desta melancólica leitura da História. “Os Dias Levantados” são os do grande processo colectivo, e do confronto; depois o tempo “voltou a entrar nos eixos” e “tempo irá passando”. Ou seja, o que se evoca é a súbita e temporalmente localizada aceleração da História, isso que ficou retido como “PREC”. Esses são os pressupostos.
Tenho estado a falar só do libreto? Nem tanto. Embora possa ele ser considerado na sua autonomia, o que pretendia salientar é a própria poética e matéria dramática da obra. E essa é uma questão estrutural, musicalmente inclusive.
Bastaria aliás comparar esta ópera com a anterior de Pinho Vargas, “Édipo ou a Tragédia do Saber”, uma inexistência dramática a meu ver. Pelo contrário, é patente que o processo poético de “Os Dias Levantados” (e falo de “poiésis” em sentido genérico) lhe foi fervilhante. Secções como as das Três Irmãs ou o sublime coro final não se resumem a “momentos de graça”, são concretas adequações das matérias poéticas e sonoras.
Se Pinho Vargas tanto insiste na reivindicação de um “pluralismo estético” pós-moderno, necessariamente “impuro” na contaminação de referências e materiais, esta é, desde logo pelo próprio carácter compósito do objecto-ópera, a sua obra em que essa situação mais liminarmente surge, inclusive no ímpeto que a habita, na urgência mesmo, que às vezes se poderia confundir com um “ostinato” por demais reiterado e será afinal uma pulsão física, um batimento da própria urgência.
Este é também um testemunho de um conjunto de intérpretes. Naturalmente, assinala uma das facetas de trabalho do maestro João Paulo Santos, sem o qual tantos eventos não teriam ocorrido como nesse âmbito há que assinalar. Mas, como o próprio maestro salientou no lançamento do disco, é também (e nisso ainda objecto de excepção) um testemunho conjunto de uma série de cantores, como os barítonos Jorge Vaz de Carvalho e Luís Rodrigues e a soprano Ana Ester Neves (esta em especial destaque), a que no caso se juntou Nicolau Domingues (e quem se lembra das primeiras representações em São Carlos e do concerto na Culturgest de que resultou este disco terá em conta a valia que ele trouxe).
Os discursos provincianos têm agora um mote de eleição “tão bom como lá fora”; poupem-nos por favor. “Os Dias Levantados” é uma bela ópera contemporânea, sucedendo que se intersecta com as nossas memórias pessoais e colectivas. É isso, que é muitíssimo.
Augusto M. Seabra