F.S.C., in Diário Económico
A edição de “Os Dias Levantados” coloca-nos perante um objecto absolutamente singular. Antes de mais, porque esta é a primeira ópera portuguesa do século XX a conhecer edição em CD – que fosse preciso esperar pelo século XXI para que tal acontecesse, é sintomático do deserto em que se transformaram tanto a ópera portuguesa como a sua edição discográfica. Singular, por outro lado, pelo tema que aborda (e celebra): o 25 de Abril de 1974, um momento de ruptura na História de Portugal que tinha acontecido apenas 24 anos antes da estreia de “Os Dias Levantados”, composição encomendada pela Expo 98. É, finalmente, uma obra singular pela força dramática que concentra, alicerçada na coesão entre o magnífico libreto da autoria de Manuel Gusmão e o dínamo musical criado por António Pinho Vargas.
A proximidade entre o momento da criação artística e o processo histórico sobre o qual elabora pode, à partida, condicionar a apreensão da ópera, podendo o mesmo suceder face ao ponto de vista assumido pelos autores (que o assumem, de exaltação, apesar da proliferação dos discursos incorporados na obra). Mas essas são circunstâncias que em nada podem toldar o impacto desta obra vibrante.
À complexidade do libreto responde Pinho Vargas com uma partitura igualmente complexa. À multiplicação de discursos e citações (um espantoso trabalho de tecelagem de Gusmão, que incorpora no seu libreto Benjamin, Pessoa, Sophia, Blake, Fernão Lopes, Jorge de Sena, entre tantos outros), corresponde o compositor com uma permanente fragmentação de estilos e linguagens musicais (no texto que acompanha o CD, Pinho Vargas fala em “desconcertos históricos de linguagens musicais”).
É esta intertextualidade (a todos os níveis) que faz a riqueza da obra, servida nesta gravação por um bom conjunto de solistas, por um excelente coro do São Carlos e por uma Orquestra Sinfónica Portuguesa dirigida a pulso por João Paulo Santos. A gravação foi feita ao vivo, numa apresentação em versão de concerto na Culturgest, em 2002, e a qualidade de som deixa por vezes a desejar, sobretudo no I Acto, mas nada que comprometa o resultado final.
Um disco obrigatório para conhecer os dias da música portuguesa contemporânea, ao qual bem se podem aplicar a citação de Francisco Manuel de Melo incluída no libreto: “Este caso (…) pareceo como hum Cometa que, sendo produzido da baixa exalação da Terra, subio e se acendeo no Ar”.