O homem duplicado
A ópera “Outro fim” resulta do trabalho de dois dos mais importantes
criadores portugueses atuais: António Pinho Vargas, compositor, e José Maria Vieira Mendes, escritor. A música do primeiro impõe uma reflexão constante, na medida em que resulta sempre da inquietação perante a arte, a vida, o poder que a consome; Vieira Mendes, no teatro, no cinema e, aqui, na ópera, estabelece também uma reflexão sobre a escrita como instrumento da representação – interrogação – do que é humano e do que, no sobreviver (ou não), ao humano diz respeito. O encontro dos dois autores numa só obra pressupõe, por isso, um frente a frente com algo essencial. O que se confirma.
Esta é uma “ópera trágica”, diz Vieira Mendes nos textos de apresentação. Há um Homem, que foge, e um Irmão do Homem, que fica. Há também a
Cunhada do Homem e a Mulher do Homem. Tudo se passa ao longo das estações, de um verão ao verão seguinte. O Homem, distante, escreve à Mulher, através do Irmão. Este acaba por imergir nas mensagens que medeia, assumindo a personalidade do próprio Homem, transformando-se nele – o duplicado que não pode deixar de se apaixonar pela mulher. Mas eis que o Homem regressa e, no momento em que o amor poderia prevalecer, no instante em que há uma possibilidade de redenção, sobrevém a tragédia, o confronto entre um e o mesmo, o Irmão e a sua imagem. Ele é então o assassino. No final, tudo regressa à origem, a história revista pela Mulher que escreve e sobrevive, e a Mãe que a recita: “de verão a verão à procura de outra vida, outro homem, outra carta, um outro fim ou outro princípio”.
Pinho Vargas conhece bem o drama essencial que Vieira Mendes traduz
aqui nesse “amor intenso, interrompido” por um final “trágico e fatal”, como o
define. É o drama essencial que atravessa a sua obra e que a coloca entre as
maiores, o drama que tem a ver com a vida e com a dor, com tudo o que é possível e impossível num só instante, num só ser.
A música surge, assim, como se fosse ela mesma um libreto, um outro e o
mesmo libreto, humano, multifacetado, como as personagens, o seu pensamento, a sua ação, o meio onde se encontram. Há a música exterior, plena de acontecimentos, como na cena do café, e a mais interior, angustiada, tão densa, de tão rarefeita, na precisão dos sons essenciais, como na primavera em que as cartas não chegam. E há sempre momentos memoráveis, uns a seguir a outros, há árias e ariosos, como nesse prenúncio do Homem – “Perco a vista” – ou o dueto de amor, no outono, entre o Homem e a Mulher, que se inicia com o mais perigoso desejo “quem dera para mim a vida dos outros” – e que termina na “Luz” impossível, “Sou tu, ser eu (…) Pele tão dura, mão tão gasta”.
A gravação agora editada provém das duas únicas récitas, quando da
estreia, na Culturgest, em Lisboa, poucos dias antes do natal de 2008. O elenco é primoroso. Reúne Larissa Savchenko (Mãe), Sónia Alcobaça (Mulher), Madalena Boléo, (Cunhada), Luís Rodrigues (Homem) e Mário Alves (Irmão), aos quais se juntam 24 músicos da Orquestra Sinfónica Portuguesa, sob a direção de Cesário Costa.
A edição de “Outro fim” em disco foi antecedida em pouco mais de um mês
pela publicação de “Step by step”, conjunto (belíssimo) de obras para
percussão, de António Pinho Vargas, interpretadas pelo grupo Drumming, de
Miquel Bernat.
O CD abre com os oito “Estudos e Interlúdios”, de 2000, uma das obras
maiores do compositor, pela complexidade e diversidade rítmica, e encerra com uma peça mais ou menos contemporânea desta, “Steps by Steps: Wolfs!”, de 2002, que resultou de uma encomenda do Drumming, e que recupera “Born To Be Wild”, dos Steppenwolf, e o imaginário de “Easy Rider”. Entre estas duas obras encontram-se outras duas, de 2011: “Políticas da amizade”, estudo para vibrafone – ou ensaio, para este instrumento -, que retoma um título de Jacques Derrida, e “Árias de ópera para tuba e percussão”. Uma e outra obra inscrevem-se claramente na abordagem recorrente e profunda do texto e da voz, por Pinho Vargas, no contexto estritamente musical.
A aparição tão próxima destes dois discos tem de fazer pensar tudo o
que à atividade musical em Portugal diz respeito e, sobretudo, o que tem a ver
com a edição, seja em disco, em partitura ou em qualquer suporte que ateste a sua existência.
“Outro fim” saiu com a chancela da Culturgest, que acolheu a estreia da
ópera, e “Step by step”, não sendo um disco de jazz – longe disso -, tem o
“selo” do Jazz ao Centro Club, entidade organizadora dos Encontros Internacionais de Jazz de Coimbra.”Step by step” encontra-se, por isso,
sobretudo, em lojas que prestam atenção especial ao jazz; “Outro fim” está à
venda na Culturgest, em Lisboa e no Porto, e em discotecas que quase se
poderiam dizer “de autor”.
Não por acaso, a tese de doutoramento de António Pinho Vargas, “Música
e poder”, remete exatamente para os processos sociológicos na base da ausência da música portuguesa no contexto europeu. Seria irónico, se não fosse trágico. A análise do compositor e toda a reflexão que tem tornado pública, demonstram a incapacidade existente para se cuidar deste património. Pinho Vargas vai direto ao problema. Quando da apresentação de “Outro fim” à imprensa, não hesitou em dizer que teve de “lutar por este disco, como pela maior parte de todos os outros”. E não são muitos, o que é incompreensível, quando se está, provavelmente, perante o mais importante compositor português vivo.
À parte a faceta de jazz de Pinho Vargas (que também mereceria mais
atenção), existe apenas uma outra ópera em CD, “Os dias levantados”,das quatro que compôs, além de antigas edições de “Monodia – quasi um
requiem”, “Versos”, “Six Portraits of Pain” e “Improvisações”, provavelmente já esgotadas, na sua maioria.
Mas dói ainda mais quando se contam as ausências ou o que apenas pode sobreviver na memória de quem assistiu àspoucas e, muitas vezes, únicas apresentações de cada uma das suas obras – as oratórias, as peças para orquestra, para conjuntos de câmara, para solistas. O problema multiplica-se pelos compositores portugueses, mesmo tendo em conta alguma evolução editorial, nos últimos anos, que não acompanha, de todo, o que a prática musical cresceu, nas duas últimas décadas.
Há pouco mais de um mês, António Pinho Vargas escrevia que a condição do compositor, atualmente, não difere muito da que tinha no século XVIII, quando a música que compunha existia apenas quando era interpretada ao vivo. Basta a recordação da oratória “Judas”, de 2002, do Requiem, de 2012, do Magnificat e do De Profundis, do último ano – obras de Pinho Vargas, de uma grandeza extraordinária -, para se perceber a dimensão do património que se ignora, e da desgraça que é esse alheamento.
António Pinho Vargas
Outro Fim – Elementos da Orquestra
Sinfónica Portuguesa, dir. Cesário Costa, 2CD Culturgest/APV, 85´27″
Step by Step – Drumming – CD Jazz ao
Centro Club/JACC, 60´21″
Maria Augusta Gonçalves