Augusto Seabra, in Público

(1ª Audição)
Anssi Kartunen, Remix Ensemble, Franck Ollu
Casa da Música, 15 de Abril, às 19h

UMA MELANCOLIA DO PRESENTE

Encomenda da Casa da Música para a sua abertura pública, esta é a obra da dor tornada constituítiva à melancolia do artista. Mas não menos é a afirmação da possibilidade de uma experiência que também exista autónomamente do tempo e espaço das condições materiais de gestação.

Desde Setembro transacto, quando da estreia de Reentering, que Pinho Vargas inclui na apresentação das suas obras um texto sobre \”a melancolia física do artista\”, com uma epígrafe colhida em Peter Sloterderjik: \”não há apenas aprendizagem positivas…ao lado há também um verdadeiro curso de decepções\”.
Esse texto não diz respeito à condição da pessoa, mas sim do \”artista\”. Por certo que, nessa afirmada consciência, nesse \”curso de decepções\”, ocorrem condições concretas – da percepção de \”uma inutilidade da arte e da música no quadro do espaço tempo em que vivo\”, afirma.
O tão abordado \”paradoxo do músico\” na criação contemporânea atinge no caso português níveis ainda mais agudos: depois de estreada uma obra institucionalmente encomendada, que existência concreta poderá ainda essa ter, sendo certo que, como Pinho Vargas afirma, está \”amputada quase sempre dos seus modos actuais de sobrevivência – a edição da partitura e a edição discográfica\”? Sendo até não menos certo que este autor tem comparativamente um estatuto privilegiado, com discos editados e execução com alguma regularidade de obras suas, ainda assim esta condição de finitude, de transitoriedade agudizada por concretas condições, não deixa de moldar a sua consciência enquanto artista.
O que também importa notar é que esta percepção molda o gesto composicional numa perspectiva bem mais ampla, que se assinala no último prágrafo do texto: \”No entanto [com todas essas limitações e para além delas], quando componho, sinto-me deslocado para fora das determinações do real e concentrado na coisa-em-si e assim posto em sosssego na atitude desinteressada kantiana\”. Para fora, e no entanto marcado no gesto, ouso eu supôr.
Six Portraits of Pain, para violoncelo e largo conjunto instrumental, encomenda da Casa da Música para a sua abertura pública, é a obra dessa inquietação, dessa dor tornada constituítiva à melancolia do artista (\”Esta dor constitui-nos, esta dor é agora o nosso estado de espírito\” – Thomas Bernhard). Mas não menos é a afirmação da possibilidade de, pela \”coisa-em-si\”, pela obra, ter uma experiência estética que também exista autónomamente do tempo e espaço das suas condições materiais de gestação, a possibilidade de uma suspensão e uma \”ucronia\”, para além do tempo.
\”1. Espinosa, 2. Thomas Bernhard, 3. Manuel Gusmão I, 4. Akhmatova 5. Cadenza sopra Espinosa, 6. Gusmão II e Coda: Paul Celan\” não são, é óbvio, \”retratos musicais\” desses autores, mas quadros do impacto que esses, que concretos textos desses, suscitaram no leitor que é também compositor – e eventualmente nos intérpretes, já que, exceptuado o fragmento de Anna Akhamatova que é lido em voz alta, só àqueles é solicitado que também leiam os textos que o compositor inscreveu na partitura, numa dramaturgia da \”dôr\”.
Com os textos de outros, em diálogo \”ucrónico\” com eles, o que Pinho Vargas delineia é uma possibilidade de reinscrição do sujeito como matéria da própria música. É um trilho pessoal e no entanto próximo do de outros, em reconsideração dos paradigmas de inscrição do sujeito que são Schubert e Schumann – e essa é uma questão que também particularmente me importa.
Há quem entenda que categorias como \”sublime\” e \”belo\” estão irremediavelmente caducas pela experiência da arte moderna – José Gil afirmava-o recentemente. Pergunto-me todavia, e cada vez mais, se depois de Duchamp não teremos ainda de reconsiderar Kant – alargando uma discussão que tem estado sobretudo presente nas artes plásticas, designadamente com o Kant after Duchamp de Thierry Duve – e também de tentar uma inscrição e uma experiência que resistam para além da sucessão de transitoriedades e dos horizontes acumulados de negatividade da \”obra-em-si\”.
São questões que também moldam a minha experiência pessoal de conhecimento de Six Portraits of Pain, certamente a obra mais ambiciosa e eloquente do autor após Os Dias Levantados e Acting Out – arriscaria aliás que aqui se desenha um novo modo de \”acting\”, introspectivo, não sem paralelos e também elucidativas dissemelhanças com o de Acting Out.
A obra não é apenas um diálogo entre o violoncelo e o conjunto mas tem também diversas \”dramatis personae\” que se destacam, sendo de realce o \”concertino\” que se forma entre o violoncelo e dois violinos.
A sonoridade grave e nobre do violoncelo, como também o uso do instrumento em toda a sua extensão, são particularmente vibrantes no \”macro-retrato\”, o percurso em que o sujeito se delineia afinal – e muito pessoalmente não deixo de evocar que uma das obras maiores do Schumann final é o Concerto de Violoncelo com a sua tão distintiva estrutura rapsódica
Convirá não esquecer que Pinho Vargas tem ainda assim um estatuto reconhecido, e a presença de um grande violoncelista como Anssi Karttunen demonstrou, para das conhecidas peripécias da Casa, um interesse em garantir as melhores condições a esta estreia – e essa presença foi também motor da exaltante execução por parte do Remix Ensemble dirigido por Frank Ollu, com destaque, que foram mesmo primorosos, para os violinistas Angel Gimeno e Xuan Du.
À mesma hora em que esta peça para a abertura da Casa da Música era estreada ocorria a inauguração oficial. O poder político e cultural abriu a Casa na ignorância da Música, e com esse estiveram os focos do interesse mediático – outro episódio da \”melancolia do artista\”.