A personalidade artística de Pinho Vargas é singular por uma dupla presença no campo musical: pianista, compositor e jazzman por um lado, compositor contemporâneo por outro.
A singularidade radicaliza-se tanto mais quanto estas vertentes aparecem inteiramente dissociados: não só Pinho Vargas não se tem mostrado de modo nenhum adepto de qualquer modo de crossover composicional, como também, e apesar do treino como pianista, inclusive académico, não é intérprete das suas próprias composições eruditas.
O que poderia à primeira vista parecer um caso bifacetado, para não dizer mesmo artisticamente de dupla personalidade (e nesse sentido inclusive mais complexo do que a \”heteronímia\” de que ele próprio fala), tem contudo outras implicações, como uma aguda noção da relação física, sensorial, com a matéria musical.
A noção de \”pulsão\”, ou mesmo de \”pulsação\” (no que isso supõe mesmo de uma relação imediata com o investimento físico e emotivo e com as interacções) tão importante no jazz, o beat, seja de periodicidades regulares ou irregulares, manifesta-se assim também como fulcral no seu trabalho de compositor contemporâneo. Ocorre assim falar a propósito da sua poética composicional de dispositivos pulsionais bem como, mais latamente, de uma problematização do sentir.
Ora, ainda que de modos de todo diversos, não menos há que falar de dispositivos pulsioniais e de sentir a propósito deste Solo.
É provável que uma tão longa ausência não deixe também de se relacionar com um anseio de reconhecimento e legitimação no campo composicional erudito. Se Pinho Vargas tem certamente a noção de ter também a facilidade composicional, digamos mesmo que estritamente melódica, que fizeram alguns dos seus temas como \”Tom Waits\” e \”Vilas Morenas\” tornaram-se bem reconhecidos, os únicos temas \”novos\” que surgem em Solo, \”Funerais\” e \”Casas de Granito no Minho\” são afinal também dos anos 90, da mesma época dos outros. Não há portanto, em rigor, \”temas novos\”, elementos mais recentes de composição jazzística.
De certa maneira, este regresso (por coincidência simultâneo com um disco com três composições \”eruditas\”) radicaliza a personalidade bifacetada: há o Pinho Vargas-compositor, que nunca é intérprete das suas obras, e o Pinho Vargas-pianista, que não dá novos sinais de composição, é apenas intérprete, re-inventor de si mesmo.
Pode-se considerar uma tal noção, de \”re-inventor de si mesmo\”, no sentido em que ele se revisita, de algum modo retoma os seus próprios standards e apenas esses, tanto mais quanto a solo. E é no modo como o faz que há igualmente falar de \”uma aguda noção da relação física, sensorial, com a matéria musical\”, de dispositivos pulsionais e de sentir. Solo é o disco mais livre e luminoso de António Pinho Vargas, dir-se-ia mesmo, no notório princípio do prazer deste sentir, aquele em que ele surge mais \”descomplexado\”.
\”Drôle de chemin\” – foi precisa uma tão longa ausência, uma dedicação exclusiva à prática composicional erudita no entretanto, para Pinho Vargas sentir de novo, e nos dar a ouvir, todo o prazer que também tem em ser pianista de jazz, em pelos modos da improvisação jazzística ter essa relação física e pulsional imediata com matérias musicais.
Reencontra-se o toque preciso e cristalino, na linhagem de um Chick Corea. Mas certamente não é fortuito que um outro pianista que Pinho Vargas agora por vezes refere seja Brad Mehldau, que tem também uma aproximação livre e descomplexada dos \”standards\”, mesmo das \”songs\”.
Parecerá bizarro que esteja subentendido em Solo um outro título, pelo qual Pinho Vargas queria designar o disco: \”Imperfeições\” (e assim o cd 1 e o cd 2 têm os subtítulos de \”Imperfeições 1\” e \”Imperfeições 2\”). Mas a \”imperfeição\” é o do próprio rasgo irrepetível de cada momento, da volúpia do sentir e de uma pulsão, da réstea que fica gravada, sem o \”reworking\” adicional – ou, se se quiser, é axiologicamente do próprio princípio da indeterminação, do único e da sua multiplicidade, na arte do jazz.
Ouça-se a simplicidade contida de \”Casa de granito no Minho\” ou de \”Lindo ramo, verde escuro\” como a longa divagação de \”Fado Negro\”, a energia imediata de \”Tom Waits\” como a amplitude de meios pianísticos e sonoridades de \”General complex\”, o \”staccato\” e os \”ostinati\” de \”Vilas morenas\”, \”As mãos\” ou ainda mais \”O Movimento parado das árvores\”, ouça-se sobretudo, momento de excepção, o modo como após \”Prelude to June (Tabor)\”, Pinho Vargas \”ataca\” propriamente \”June\”, em euforia de revisitação, de se redescobrir.
E por isso se pode reiterar que Solo é o disco mais livre e luminoso de António Pinho Vargas, o disco de um sentir que é o do princípio do prazer.”
Augusto M. Seabra
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