António Pinho Vargas

PT

/

EN

MENU

04 de agosto, 2025

"É a música de António Pinho Vargas. Mas só agora posso falar nestes termos"

entrevista de Diana Ferreira, Público 04/08/2025

"É a música de António Pinho Vargas. Mas só agora posso falar nestes termos", entrevista de Diana Ferreira, Público

“É a música de António Pinho Vargas. Mas só agora posso falar nestes termos”

Cresceu no Porto onde, na adolescência, se encontrou com a música através da prática informal em “bandas de garagem”. Licenciou-se em História, estudou Piano e Composição e, ao longo dos anos 80, criou um nome tocando a sua própria música um pouco por todo o país e no estrangeiro. Sedento de um mundo que apenas ainda intuía, decidiu inesperadamente arriscar o já relativo sucesso conquistado, mudando-se para os Países Baixos, para se dedicar à composição e estudar durante três anos com Klaas de Vries.

Ensinou Composição na Escola Superior de Música de Lisboa (ESML), entre 1991 e 2019, interrompendo uma vez mais a sua actividade, desta vez para se concentrar num doutoramento em Sociologia, de que resultou a tese Música e Poder: para uma sociologia da ausência da música portuguesa no contexto europeu. Estudar, compor e ouvir música onde ela vive (em concerto) são actividades que fazem parte do seu ser, do intelectual e sedutor contador de histórias, homem íntegro, sempre curioso, dotado de prodigiosa memória e de valores proporcionais apenas à sua desconcertante sensibilidade perante a beleza das coisas.

Várias obras para orquestra, música de câmara e quatro óperas mais tarde, a duas semanas de completar 74 anos e um mês e meio após o lançamento do seu mais recente disco e de um documentário que Adriana Romero realizou para a Artway, António Pinho Vargas tem ainda importantes projectos a desenvolver. 


Como se apresenta António Pinho Vargas?

Em primeiro lugar, apresento-me com o meu nome, que as pessoas associam a muitas coisas diferentes, porque a minha vida é já longa e foi cheia de trabalho. Sou compositor e músico. É curioso pensar no nome, porque o documentário que a Adriana Romero fez para a Artway tem como título “António Pinho Vargas – o que é um nome?”. É, aliás, um documentário com o qual  estou muito satisfeito e que me dá a estranha sensação de contar a história da minha vida. Está lá tudo, porque usa os recortes, as gravações de arquivo e a maneira como combina e mistura tudo é admirável. Funciona como uma narrativa secreta.


Como é que a música se revelou o seu projecto de vida?

De forma muito resumida: depois de deixar a Faculdade de Direito de Lisboa, onde vivi três meses bastante intensos, e de regressar ao Porto, onde viria a licenciar-me em História, comecei um caminho múltiplo que incluiu estudar piano clássico, estudar jazz (com discos) e começar a estudar composição, no conservatório. Já tinha estudado piano em criança e antes de ir para Lisboa tocava naquilo que hoje se chamaria banda de garagem. Tive projectos como Anar Jazz Trio, Zanarp e toquei com vários outros. Em 1976, o Rão Kyao veio ao Porto para tocar connosco, uma espécie de jam session, mas na qual dizíamos o que íamos tocar: Stolen Moments, um Blues minor etc, No final convidou-me para tocar com ele em Liubliana e gravar um disco nesse ano. Entretanto, já a dar aulas, chego a 1980 e decido não tocar mais com grupos de rock. Parece pouco importante mas não foi. Enquanto músico, percebi que perseguia um projecto próprio, um sonho vago e que a minha vida musical teria que ser diferente. Dar aulas de piano, terminar o curso na faculdade e ensaiar com o meu grupo. Depois vem a fase de concretização, de 1983 a 1990, com os discos e os concertos, e o desejo de aprofundar a minha prática da composição, que conduz à entrada num universo cultural com problemas, com hegemonias já ultrapassadas. Entre 1987 e 1990 vivo em Amesterdão, para estudar composição com Klaas de Vries em Roterdão. Regressado a Portugal, sou convidado a ensinar na Escola Superior de Música de Lisboa, em 1991, onde a minha entrada foi vista como “produtora de atrito” - como disse o meu colega Carlos Caires - de renovação e, portanto, de algumas alterações lentas, mas estruturais, no funcionamento do ensino da composição.


Como se deu a sua passagem do anonimato a figura reconhecida? 

Em 1983, a minha primeira entrevista foi dada ao Fernando Assis Pacheco, para o Se7e. Senti-me muito honrado por ser entrevistado por um intelectual, um poeta. A "mudança de estatuto" não é algo que aconteça instantaneamente, mas lembro-me de o Ramón Galarza me dizer, dias depois de um concerto no Jazz em Agosto de 1985: “sabes, o que senti no que me diziam no final é que já não és apenas um pianista, és um pianista dotado de uma música, um compositor”. Foi a minha música e a maneira como nós a tocávamos e, de certo modo, a maneira como eu comecei a falar e a situar-me no espaço público. Não se falava daquela maneira (que era a minha).


Como coexistem, em si, a sua música de tradição escrita e a outra, que resulta da prática de pianista/compositor, registada nos seus discos dos anos 80?

Primeiro assumindo que são duas práticas musicais diferentes, uma com 1000 anos, outra com 100 anos, conforme tento explicar no artigo “Con(di)vergências: as relações entre o jazz e a música contemporânea”, publicado no nº 85 da Colóquio Artes, em 1990 a pedido do Dr. Carlos Pontes Leça.  

Depois assumindo, anos mais tarde, que cada uma dessas práticas se acumulou em mim, com muito estudo e uma grande aprendizagem. Na verdade, continuo a pensar que são duas práticas com muitas diferenças (institucionais, nos lugares de enunciação, nas escolas de música, na crítica, etc). A consciência aguda - por dentro - das diferenças exprimiu-se em mim de forma radical: fui observando muitos colegas meus e outros músicos (pianistas, compositores, músicos de jazz) a defenderem a posição de que só há duas músicas: a boa e a má. Considero esta posição errada, sem correspondência com o mundo real. Claro que há música boa em todas as práticas musicais, mas o problema não é esse. Existe na vida musical do mundo ocidental, em sentido lato, uma enorme pluralidade de tendências em cada caso, mas a música erudita tem lugar específico institucional (as grandes salas, a crítica…) Face a isto, o meu caso é invulgar porque, em ambas as práticas, atingi uma grande relevância, em duas fases diferentes da minha vida, com um desfasamento de cerca de 15/20 anos. Hoje existem novas formas de interacção, mas estou em crer que, no essencial, os 2 campos continuam a ocupar os seus territórios. Não são 2 ou 3 projectos individuais, como os de Gunther Schuller (1925-2015), Anthony Davis (1951) ou Terence Blanchard (1962), que alteram estruturas pesadas e resistências obstinadas. 

A propósito dos seus discos dos anos 80, uma vez disse que todos eles tinham, pelo menos, uma música de jazz. Como define as restantes, que não são jazz?

É a música de António Pinho Vargas. Mas só agora posso falar nestes termos. 


O que o faz levantar-se da cama diariamente? 

Prosseguir com a tarefa de estar vivo. Durante os anos 80 tive um recorte colado na parede da minha cozinha: “…tal como dizia Aristóteles, felicidade — tarefa para toda a vida”.


Depois dos livros, dos filhos, da árvore, das muitas obras e discos, o que ainda tem por fazer?

Tentar organizar o que fiz, completar o registo de várias obras ainda por gravar e/ou editar, assim como descobrir o que gostaria de ainda compor – talvez uma peça para orquestra, que é aquilo que me atrai mais, de momento. Gostaria de ter o apoio de uma instituição, já não tenho idade para compor para a gaveta, mas não sei…. O mundo tem sempre surpresas para nós, nem todas positivas.


Actualmente, sobra-lhe tempo ou anda permanentemente ocupado? 

Depois do disco Lamentos (2023), a verdade é que tenho sempre alguma coisa para fazer. Quando não tenho, invento. Compus duas peças, entretanto. 


Que obras considera marcos relevantes na sua produção musical? 

Na primeira fase, o disco “Outros lugares” (1983), que um artista, pintor, um dia, me disse ter sido uma “pedrada de oxigénio para nós”. Nós quem? Gente que até podia não me conhecer, mas que a partir desse disco, o meu primeiro, seguiu o meu percurso e trabalho com atenção e interesse. O homem que me falou esperou 42 anos para me dizer o que disse, com o LP debaixo do braço! Depois, em 2008, os dois Solos, permitiram-me fazer versões de piano solo de 36 músicas e editar dois volumes de partituras. Ao que parece os alunos de piano dos conservatórios e de escolas de música gostam de as tocar e fazem-no já há bastantes anos. Ajuda a aumentar a sua perenidade Na música erudita, “Mirrors” (1989-90) para piano, o quarteto de cordas “Monodia - quasi un requiem” (1993); “Judas” (2002); a ópera “Os dias levantados” (1998, rev. 2000), o sexteto de percussão “Estudos e Interlúdios” (2000); “Six Portraits of” Pain (2005) - um tour de force musical e intelectual que representou 3 ou 4 anos de trabalho; “Requiem” (2012); o Concerto para Violino (2015) – dia inesquecível, ensaios inesquecíveis numa atmosfera colectiva de alegria, de prazer, maravilhoso tempo de trabalho com a Tamila [Kharambura violinista que estreou a obra com a Orquestra Metropolitana de Lisboa, sob a direcção de Garry Walker]… Sabia que o concerto ia correr bem, mas ainda superou as minhas expectativas: criou-se uma atmosfera entre todos que foi muito comovente. O Mega Ferreira disse-me umas semanas depois: “como na segunda parte era a Nona Sinfonia de Beethoven, o meu amigo teve a sala cheia a ouvir o seu concerto”. Uma lição de programação para quem quiser aprender. A “Sinfonia (subjectiva)” (2019) teve também uma estreia inesquecível e considero-a uma das minhas melhores obras. No meu “delírio” (cito um personagem de Virgílio Ferreira) tenho a ousadia de pensar que deveria ser tocada todos os anos. O disco “Lamentos”, que foi gravado em sessão, é muito importante para mim, tal como o “Six Portraits of Pain | Oscuro” [lançado há mês e meio].


Por que motivo lhe parece importante este último disco? 

“Oscuro” (2022) é uma obra a que, numa entrevista, me referi como um bloco de granito, densa, pesada. Considero-a hoje uma peça importante, bem conseguida no seu propósito de retrato de um mundo em disfunção. De resto, corresponde à saída da minha fase dura e, para mim, poder ouvir “Oscuro” foi, em si mesmo, uma conquista, por causa de um problema de saúde que me afectou durante dois anos a audição. O Pedro Neves fez um trabalho excepcional com a Orquestra Sinfónica do Porto Casa da Música. E a gravação de Hugo Romano Guimarães, a quem pedi diversos retoques e melhorias quase impensáveis na gravação, é também excepcional. As duas peças têm na sua origem as diversas dores do mundo e dos humanos. O disco inclui ainda o “bónus” da gravação do Arquivo Antena 2 da estreia de “Six Portraits of Pain” [2005], uma interpretação miraculosa que ocorreu na estreia de uma obra que tinha começado a ser ensaiada apenas 3 dias antes, por Anssi Karttunen, Frank Ollu e o Remix Ensemble Casa da Música. Eu assisti à estreia, que foi uma situação muito emocionante. Aquele texto da Akhmátova rebenta qualquer um! Mas não tinha a gravação e esperei vários meses até que pedi a um aluno da ESML que me fizesse uma cópia da transmissão na rádio. Tinha gravado. Quando finalmente pude escutar a gravação, ouvi-a outra vez. Para acreditar! Foi a primeira vez que me aconteceu ouvir duas vezes seguidas uma obra. Se isto não é uma demonstração de encantamento, no sentido mais profundo da palavra, através de meios expressivos da dureza, da dor… Tenho uma ligação muito forte àquela peça e àquela interpretação, à maneira extraordinária como eles tocaram, que não pára de me espantar... 


De que forma pode a música contribuir para “curar” a civilização?

Nós temos sempre a obrigação de sermos decentes em tudo. Talvez não seja suficiente para permitir uma melhoria face a problemas tão graves. Não me ocorre nenhuma outra ideia. Talvez ser sempre solidário com o sofrimento.


Em que medida é que a sua imensa cultura (incluindo a musical) influencia o seu trabalho de compositor? Torna mais difícil a tarefa de compor? 

Claro que torna mais difícil: conheço muita música; o Mega Ferreira dizia-me, no seu tempo no CCB: “fui vendo que o António é de longe o compositor que mais vezes vem assistir a concertos”. Tenho genuíno prazer quando ouço uma peça genial, como o Concerto para Orquestra de Lutosławski a que assisti tocado pela Orquestra Metropolitana de Lisboa, dirigida por Magnus Lindberg, ou a Eonta, de Xenakis, com Claude Helffer a tocar de cor!, no Paradiso em Amesterdão em 1988 ou, mais tarde, a Cantata de Stravinsky, dirigida por Rheinbert de Leeuw, no mesmo local. Quando corre bem, é muito bom. Quando nos parece que corre mal, é um tormento, uma dor de alma semanas a fio. 


Da imensidão da sua memória prodigiosa, que “lições” dos mestres ou que aprendizagens recorda como determinantes no seu percurso?

A mais antiga é a primeira aula de Klaas de Vries, em 1987: “interessa-me a ideia da peça”. No meu segundo ano na Holanda, o Birtwistle foi a Roterdão para um evento da classe de composição e, ao contrário do concerto em que tinha sido tocada uma obra sua, a que eu assistira dois dias antes, a sessão com os alunos de composição estava cheia. No início, o Birtwistle perguntou com voz forte: “Porque é que querem ouvir-me falar e não quiseram vir ouvir a minha música no concerto?” Silêncio sepulcral. Não se ouvia nada. “Quem pensam que irá assistir às vossas peças se não ouvem as dos vossos colegas mais velhos?” Isto para mim foi a lição de Birtwistle! Não deixo de encontrar razões para a considerar muito importante. Contei-a inúmeras vezes nas minhas aulas. E sei muito bem que não foi suficiente…Outro ensinamento importante foi do Wolfgang Rihm, numa conferência que deu no festival Ars Musica [Bruxelas], em 1989 ou 1990: “Quando começo uma peça, não sei quanto tempo vai durar, em quantas partes se vai dividir, como é que vai acabar; estou no início de um processo e é ele que vai conduzir-me.” Ainda talvez outra: uma vez  numa FNAC em Paris, o meu amigo Jan van de Putte pega num CD e perguntou-me se já o tinha ouvido, não era o caso: “Very well written and completely empty”. A radical desmontagem da frase padrão “está muito bem escrita”. Do Carlos Caires e do Luís Tinoco, recebi muitas lições de amizade…


Com que espírito aceitou o desafio de ser assessor de Miguel Lobo Antunes para a programação musical do Centro Cultural de Belém (1996-1999) e programador em Serralves (1994-2000), numa altura em que escrever música era o seu grande projecto?

Senti que era preciso cumprir uma missão, digamos assim. Ao contrário do que fiz no CCB [em que houve momentos em que pensei que determinado repertório era importante, mas depois constatava que, para a vida musical e para os compositores portugueses não era tão importante assim], o que eu fiz em Serralves (onde tinha anteriormente programado os primeiros anos do Jazz no Parque, entre 1991 e 1994) cumpriu a função. Tratava-se de analisar um local com necessidades, levar música e levar músicos locais, criar um espaço de concertos quando ele não existia. E foram feitos uns 10 a 12 concertos por ano, os dois últimos com música de Emmanuel Nunes, com o Ictus Ensemble. Há já 10 anos que não [era tocada], no Porto, música do mais importante compositor português. 


O que o deixa verdadeiramente satisfeito ou até mesmo orgulhoso, na sua vida pessoal e/ou profissional? 

Orgulho-me da maneira como actuei quando os meus filhos nasceram. Orgulho-me de ter podido tocar muitas vezes perante salas e espaços cheios de gente, ver o público de pé a aplaudir vezes sem conta, em Portugal e em muitos países europeus. Foi muito exaltante! Tal como ouvir os aplausos e os gritos dirigidos ao compositor quando subo ao palco em muitas estreias de obras minhas. Tantas vezes…


Como olharia o António Pinho Vargas de há 50 anos para uma figura como o António Pinho Vargas de hoje? 

Talvez com admiração pelo percurso e pela música. Faria como um homem que, uma vez, num supermercado, me tocou no ombro e perguntou: “Desculpe, é o António Pinho Vargas?” Respondi que sim. Apertou-me a mão e disse: “Muitos parabéns… E mais nada!” Foi incrível.


E o que diria esse jovem face ao contexto actual da música de tradição erudita em Portugal? 

Diria que parece impossível, porque houve muitas coisas que melhoraram mas, ao mesmo tempo, prosseguem atavismos provincianos que nos dificultam a vida. Há muitas coisas que eu não compreendo. 


Quais são os seus maiores medos?

Quando escrevo uma peça que me desaponta, fico devastado. Porém, quando estou perante uma interpretação insuficiente, não sei distinguir onde começa e acaba a minha responsabilidade e a dos intérpretes.


Que aspectos mudaria na música em Portugal, se lhe fossem concedidos poderes ilimitados? 

Ninguém tem poderes ilimitados, senão os ditadores, mas gostaria de implementar uma necessária e mais regular execução de obras de compositores portugueses e que os maestros não tivessem uma espécie de complexo que impede muitos deles de tocarem música de portugueses; este é um problema cultural profundo que afecta todas as artes, que Eduardo Lourenço, Boaventura Sousa Santos, José Gil e outros procuraram analisar. Reflexo pavloviano: o que tocam os grandes músicos ou maestros? Repertório canónico: alemães, italianos (ópera), etc. Os maestros que são contratados nos países centrais sentem que devem tocar Mozart, Beethoven, Brahms, Mahler ou Shostakovich, como se só tocando esse repertório provassem (ao olhar externo) que são competentes. E depois isso segue pela vida fora até ao fim. Uma espécie de vergonha de ter esta nacionalidade. A meu ver, o que é uma vergonha é o que fazem, o que pensam. Outro aspecto que gostaria de assegurar era que os subsídios do Estado fossem melhor acompanhados por uma comissão independente - e não pelos mesmos que os atribuem - que verificasse a prática resultante da atribuição dos mesmos. Por exemplo: quais são as consequências destes subsídios que atribuímos a esta instituição? Que transformações ocorreram? Que tipo de repertório fazem? Qual o seu impacto transformador na vida musical? Uma real verificação do uso dos subsídios atribuídos em prol da comunidade, em sentido largo, ou, o que é muito negativo, de pequenos grupos de influência, pouco representativos das práticas no seu todo; analisar que música fazem, a quem encomendam obras. Tentaria exercer uma vigilância regular sobre situações de abuso de poder. Parece-me ver várias, evidentes, mas talvez esteja pior da miopia… 


E no mundo, em geral?

Problematizar as ausências da música das periferias face aos países centrais do sistema-mundo, uma gritante desigualdade dos cânones, diversificando as instâncias de consagração, combatendo os nichos excludentes e, ao mesmo tempo, considerando correctamente o lugar e o direito à existência de correntes minoritárias.  O problema destas acções que proponho é o seu carácter quase utópico, pois implicam uma capacidade de avaliação e de neutralidade que é muito difícil de conseguir quanto mais fechados são os universos culturais, e os mecanismos de eternização de privilégios. A nossa música contemporânea é um campo artístico muito complexo. 


O que considera mais assustador e/ou decadente no mundo de hoje? E o que há de mais fascinante?

A situação em Gaza há muito que ultrapassou os limites do tolerável. Ser Europeu agora transporta consigo mais uma grande mancha que nos envergonha. Um crime é um crime. Dois crimes são dois crimes. A ascensão da extrema direita em todo o mundo é muito preocupante. A questão dos poderes mediáticos que são simultaneamente muito poderosos e muito opacos, na sua capacidade de manipular os votantes/espectadores, sendo que a maior parte das disputas eleitorais acontecem exactamente aí - nesse lugar não neutral. É actualmente o território onde as eleições têm lugar. Nos médias. Daqui resulta uma crise da democracia que não se renovou, que não considerou ainda como crucial corrigir os desvios que as mudanças tecnológicas provocaram. As democracias exercem-se num mundo muito diferente do da segunda metade do século XX, mas as regras são as mesmas. Fascinante será o milagre do aparecimento da beleza tantas vezes ainda, na arte ou na acção solidária, na humanidade. 


Que impressão tem da nova música e da nova geração de compositores?

Tenho uma excelente impressão porque, às vezes, me surpreende e sinto que não é igual à que se fazia há 20 ou 30 anos. E isso é muito bom. 


Diana Ferreira, Público dia 4 de Agosto de 2025

(versão publicada online)


https://www.publico.pt/2025/08/03/culturaipsilon/entrevista/musica-antonio-pinho-vargas-so-falar-nestes-termos-2142044

Oscuro I Atlas (Artway 2025)

Oscuro II Abgrung (Artway 2025)