Às vezes preciso de me relembrar do génio incomparável de Beethoven. Então vou tocar …. dois andamentos lentos das Sonatas cuja beleza me parece verdadeiramente sobrenatural (e profundamente humana) Só esta completa contradição me serve. São o da Op. 109 (1820) “Gesangvoll, mit innigster Empfindung” (por baixo em italiano “andante, molto cantabile ed expressivo), o tema das variações que terminam a Sonata Op 109 e o da Waldstein. Op 53 (de 1803-4)
No primeiro, o italiano (tradicional) diz mais ou menos a mesma coisa; mas a tradução literal do alemão é muito mais forte, muito mais eloquente: “cantando, com o sentimento mais sincero ou mais íntimo” A maravilha começo logo na indicação em alemão. É música é sublime, ainda mais sublime. (Cantar: é o que ‘cantabile’ quer dizer… )
O andamento lento da Waldstein é tão curto que se chama “Introduzione, adagio molto”. Diz Donald Tovey que foi o segundo que Beethoven escreveu. Estreou com outro, não ficou satisfeito, retirou (para usar noutra obra) e compôs o que agora existe. Entre as duas sonatas passaram desaseis anos e mudou o mundo (a Europa). Beethoven passou a escrever alguns títulos ou indicações de carácter em alemão. As convenções são operativas até deixarem de o ser; a revolução francesa, Napoleão e os nacionalismos emergentes em alguns países provocaram muitas mudanças. .
Quer um, quer outro, dos dois andamentos lentos contêm as mais evidentes e fáceis de explicar e perceber utilizações de acordes de 6ª aumentada, acorde que nos atormentou nos anos 1970 quando éramos alunos de piano de Hélia Soveral e procurávamos analisar tudo aquilo que não sabíamos classificar. Aparentemente é igual ao acorde de sétima da dominante; na realidade da escrita musical da música erudita (é dessa tradição que estou a falar) é outra coisa, reclama uma resolução numa outra direcção (e é por isso que existe; já em Mozart encontrei exemplos nas três Sonatas que estudei…).
Tento explicar-me melhor: o acorde de 7ª da dominante pode ser, por exemplo, dó-mi-sol-si bemol e resolve para Fá (suposta tónica). Mas se estiver escrito dó-mi-sol-lá # é um acorde de 6ª aumentada e resolve para Si maior (no caso da 109) – dominante da tonalidade de Mi Maior (a da Sonata Op 109); Sendo acusticamente iguais – nós, pianistas lemos lá # e Si b e tocamos a mesma nota no piano – mas a razão das duas escritas é o percurso implícito que exprime, a função, no quadro do sistema tonal de que Beethoven é o máximo expoente. O que é mais incrível é tocar quer lá# quer Sib sabendo e ouvindo que os dois trajetos tonais possíveis estão lá sempre; aliás, na IV variação da Op. 109 (no compasso 109) Beethoven, provavelmente com frémitos de prazer, escreve o dito Sib nos dois primeiros tempos e só no terceiro tempo escreve novamente o lá # original da dominante da dominante si, aumentando a sua ambiguidade potencial.
Scriabin vai usá-la sistematicamente e alguns teóricos americanos vão chamar-lhe algumas décadas mais tarde “tritone substitution”: Porqué? Porque entre o Fá e o Si (do exemplo acima), o intervalo é o de trítono.
Escrevo este post em última análise para mim próprio, por razões talvez obscuras, embora quem não conheça estas obras as possa ouvir, nas mãos de Maria João Pires, Maurizio Pollini ou de muitos, muitos outros, no Spotify, no Apple Music, etc