Carta(s) a Jorge de Sena
de Sophia de Mello Breyner Andresen
I
Não és navegador mas emigrante
Legítimo português de novecentos
Levaste contigo os teus e levaste
Sonhos fúrias trabalhos e saudade;
Moraste dia por dia a tua ausência
No mais profundo fundo das profundas
Cavernas altas onde o estar se esconde
II
E agora chega a notícia que morreste
E algo se desloca em nossa vida
III
Há muito estavas longe
Mas vinham cartas poemas e notícias
E pensávamos que sempre voltarias
Enquanto amigos teus aqui te esperassem –
E assim às vezes chegavas da terra estrangeira
Não como filho pródigo mas como irmão prudente
E ríamos e falávamos em redor da mesa
E tiniam talheres loiças e vidros
Como se tudo na chegada se alegrasse
Trazias contigo um certo ar de capitão de tempestades
– Grandioso vencedor e tão amargo vencido –
E havia avidez azáfama e pressa
No desejo de suprir anos de distância em horas de conversa
E havia uma veemente emoção em tua grave amizade
E em redor da mesa celebrávamos a festa
Do instante que brilhava entre frutos e rostos
IV
E agora chega a notícia que morreste
A morte vem como nenhuma carta.
in IIha, 1989
Jorge de Sena morreu em Maio de 1978 em Santa Bárbara, na Califórnia.
Compus música para este poema de Sophia para o Grupo Vocal Olisipo e o Quarteto de Guitarras de Paris. Tê-lo feito foi uma sorte que eu tive: ler estas palavras por dentro, comover-me com elas, ouvir as vozes e as palavras cantadas. Ouvi-a uma única vez num ensaio perto de Alvalade. Foi estreada em Paris com mais de uma dezena de obras de colegas meus compositores.