O brilho de Barthes, as duas músicas (e um detalhe)

O brilho de Barthes (e um detalhe)

Há duas músicas (pelo menos sempre o pensei): aquela que se escuta, e aquela que se toca. Estas duas músicas são duas artes inteiramente diferentes, possuindo cada uma propriamente a sua história a sua sociologia, a sua estética, a sua erótica: um mesmo autor pode ser menor se o escutarmos, imenso se o tocarmos (mesmo mal): como Schumann.

A música que se toca depende de uma actividade pouco auditiva, sobretudo manual (logo num certo sentido, muito mais sensual: é a música que vocês ou eu podemos tocar, sozinhos ou entre amigos, sem outro auditório a não ser os seus participantes (isto é, todo o risco de teatro, toda a tentação histérica são afastados), é uma música muscular, o sentido auditivo não tem aí senão um parte se sanção: é como se o corpo ouvisse – e não “a alma”; esta música não se toca “de cor”; frente ao teclado ou à estante de música, o corpo comanda, conduz, coordena, é preciso transcrever-se-lhe a ele próprio o que se lê: fabrica som e sentido: é escritor e não receptor, captador. Esta música desapareceu; em princípio ligada à classe ociosa (aristocrática), tornou-se insípida como rito mundano no advento da democracia burguesa (o piano, a jovem, o salão, o nocturno); depois apagou-se (quem toca hoje piano?). Para encontrar hoje música prática, é preciso procurar do lado de um outro público, de um outro repertório, de um outro instrumento (os jovens, a canção, a guitarra). Concorrentemente, a música passiva, receptiva, a música sonora tornou-se ‘a’ música (a de concerto, do festival, do disco, da rádio); tocar já não existe: a actividade musical deixou de ser manual, muscular, amassadora, mas apenas líquida, efusiva, “lubrificante” para usar uma palavra de Balzac. O próprio executante também mudou. O amador […] já não se encontra em lado nenhum […]

in Musica Practica, L’Arc, Beethoven.

Este texto maravilhoso que continua poucas linhas depois com um olhar profundo, eloquente sobre Beethoven foi lido por mim em francês talvez entre 1972 e 1975. E, não obstante, podemos discordar aqui ou ali do brilhante raciocínio na escrita de Barthes, o mais ilustre de todos os músicos amadores.

A revista L’ Arc nº 70 Beethoven onde foi publicado originalmente foi comprada por mim ou na Livraria Leitura, na Rua de Ceuta – sim, havia lá muitos livros em francês sobre música; agora nem há livros nem livraria – ou talvez mais tarde em Paris onde em 1974 um grupo de amigos foi pela primeira vez. A revista está ali e não me deixa mentir. Estava a ler o texto publicado em português no Óbvio e o Obtuso de 1984 e saltou-me aos olhos uma palavra estranha, que contrariava a ideia que tinha formado na primeira leitura (num estado de transe) há 50 anos, sobre o argumento de Barthes. Na tradução portuguesa de Isabel Pascoal do 1982, de resto muito boa, está a frase lâmpada que se acendeu; leio “isto é, todo o risco de teatro, toda a tentação histórica são afastados”. Não era exactamente isso de que me lembrava, qualquer coisa associada ao acto de tocar em público com envolvimento de riscos de teatro e tentações histriónicas associadas à representação (que sempre existe em público). Histórica? Fui ver.

Está no original: “tout risque de théâtre, toute tentation hystérique éloignés”. Portanto, está errada a tradução neste ponto. E confesso que até me incomoda ter encontrado este erro. Não tive nenhuma espécie de satisfação. A erótica (para usar o conceito de Barthes) associada à crítica da tradução – tantas vezes fácil – não me provoca nenhuma excitação, não me dá nenhum prazer.

A tradução tem a maior das importâncias. Há umas décadas uma amiga disse-me que não gostava de ler traduções. Todos teremos ouvido isso algum vez. A minha resposta foi cínica, mas certeira: Ai não? Então vou-te oferecer a obra completa de Dostoiévski no original!