Lachenmann descreveu o silêncio em “Fragmente-Stille, an Diotima” de Luigi Nono como “um fortíssimo de percepção agitada”. Uma bela e precisa expressão!
Parto dela para algumas considerações. Nos anos 80, quando dava muitas entrevistas, a propósito de Outros Lugares 1983, Cores e Aromas 1985, As folhas novas mudam do cor 1987, Os Jogos do mundo 1989, especialmente nas rádios mas também em jornais, faziam-me perguntas sobre o silêncio na minha música nesses discos. Tentava responder mas, de facto, ficava perplexo. Conhecia o Quarteto de Nono (1980), conhecia as Bagatelas de Webern e quase toda a sua obra, tinha tocado em 1974 no meu exame de piano do 4º ano a Kinderstück (1924) de Webern, pequena peça que naturalmente estava fora do programa em vigor, datado de 1933; mas em Julho de 1974 o júri aceitou que a tocasse extra-programa. Ou seja: sabia realmente o que era o silêncio nesses compositores! Tinha mesmo tocado esse silêncio….!
Para mim não havia silêncio nenhum em nenhum desses discos. Silêncio aconteceu 10 ou 20 anos mais tarde em Monodia-quasi un requiem 1993, em Six Portraits of Pain 2005… Mas agora, a esta distância e sabendo que cada uma dessas perguntas provinha de alguém dotado de uma biografia auditiva muito diferente da minha – factor de enorme importância e mesmo criador da gradual e crescente tribalização em 600 correntes e 500 ou talvez mil práticas musicais – penso que, às tantas, a pergunta tinha maior razão de ser do que me parecia na altura.
Era justamente essa Babel (o mundo…) na qual me movimentava com grande à vontade de acordo com o Zeitgeist daquela altura, que me permitiu muitos anos mais tarde, numa palestra num Congresso da Associação Portuguesa de Educação Musical na Fundação Gulbenkian, talvez em 2014 ou 15, sentado ao lado de António Ângelo Vasconcelos, ter terminado uma exposição sobre alguns problemas do ensino da disciplina de Análise e Técnicas de Composição com uma descrição relativamente pormenorizada dos métodos que normalmente presidem às análises da música de Webern – há muitos livros e artigos publicados sobre isso com natural destaque para as séries e os seus métodos – acrescentando aquele que me parecia um perigo inerente (escrevo de memória): o aluno olha para aqueles esquemas perfeitos e explicados no quadro em todos os seus pormenores paramétricos, fica impressionado com a enorme inteligência e a sofisticada combinatória de Webern, depois ouve a peça em questão, pode muito bem não gostar lá muito da música, vai para casa, pega na guitarra e toca Rolling Stones! A reação dos muitos (60-80?) presentes, na maior parte participantes no congresso, foi uma espontânea salva de palmas. Fiquei surpreendido nos primeiros segundos (embora satisfeito, admito), mas julgo que tinha sido sentido pelos presentes como um problema real, sublinho, aquilo que eu tinha procurado pôr em destaque.
Agora, cerca de dez anos passados, estando reformado do ensino mas não reformado da composição até ver, posso garantir – mantendo o carácter de signos que aqueles dois nomes identificavam (Webern, R. Stones) – que aquele lance de retórica não punha em questão, nem criticava de modo nenhum, aquelas músicas. Elas existem no mundo. Percebe-se a sua razão de ser histórica, social, estética, etc. Não é preciso explicar.
E, no entanto, hoje, o ancião que aqui se exprime, quer confessar que, tendo ouvido as duas músicas em questão em diferentes idades ou fases da sua vida – como é fácil compreender – ouvirá hoje com muito maior probabilidade música de Webern do que música dos Rolling Stones. Aliás, há poucas semanas, as Bagatelas Op 9…
A razão é aquela atrás referida: todos temos uma biografia auditiva, cada um tem a sua e nunca se deve esquecer disso.
António Pinho Vargas, 28 de Julho 2023