Questionário elaborado por Cristina Fernandes e Pedro Boléo para o dossier Beethoven 250 anos do Público (Dez. 2020).
- Público: Em que medida pode interessar Beethoven a um compositor de hoje? A sua grandiosidade idealista, a sua forma de desenvolver um tema, são coisas ultrapassadas? Ou ainda há algo de inspirador nos seus gestos de ruptura?
APV: Julgo que se usarmos termos mais vastos, próximos de arquétipos – por exemplo, narrativa, discurso, forma, invenção, figuras, gestos, trabalho sobre os materiais e mesmo construção de si próprio, como traço de inquietude criativa – tudo isso, em Beethoven, é passível de uso transponível para outros tipos de linguagens musicais até hoje. No livro de Schoenberg Fundamentos da Composição Musical (organizado por dois dos seus alunos americanos) quase todos os exemplos usados são de música de Beethoven, das Sonatas em particular. Creio que também no ensino da música e da composição se encontra uma das raízes poderosas da sua perenidade.
- Edward Saïd tem um texto muito interessante sobre o «estilo tardio», em que defende que o Beethoven dos últimos anos foi o menos acomodado, o mais inquieto… Concorda com esta visão? O «último» Beethoven é que o mais lhe interessa a si enquanto compositor?
APV – Beethoven foi o primeiro compositor sobre o qual se escreveu em termos de três “estilos” ainda no séc. XIX (Wilhelm von Lenz, Beethoven et ses trois styles, 1855). Ou seja, ao qual se pôde atribuir, posteriormente, a capacidade de mudar, de se tranformar, de se auto-criar com rupturas. As suas últimas obras (as 3 últimas Sonatas, os últimos Quartetos, por exemplo) são obras extraordinárias e foram de facto eleitas pelos modernos como portadoras de futuro, mesmo sendo uma das suas características o uso de arcaísmos (as fugas…). Li sobre isso mesmo antes de as conhecer propriamente, excepto a Sonata Op 110. Os discursos sobre Beethoven constituiriam uma temática por si só. Cada época, cada compositor, elege as suas referências do passado de modo a fazer o seu presente.
Quando ouvi pela primeira vez a Grande Fuga opus 133 o mais impressionante para mim foi a incrível sucessão de secções. Uma imaginação transbordante, infinita. Depois podemos olhar a partitura com dois níveis de foco binocular: uma lente próxima atenta às entidades temáticas, aos detalhes melódicos, harmónicos, etc., ou uma lente afastada na qual ganham relevo nítido as diferentes manchas de figuras distintas. No entanto está longe de ser das obras mais tocadas. Há vários niveis de recepção. Existem as obras mais tocadas nas salas de concertos, as obras mais analisadas no ensino ou as obras mais estudadas pela musicologia histórica ou biográfica. Nem sempre são coincidentes. Mas os vários aspectos interpenetram-se num todo simbólico muito poderoso. Além disso cada um de nós selecciona as suas “afinidades electivas”. A Sonata Waldstein opus 53 pertence ao chamado segundo período mas desde cedo que esteve na minha selecção privada de encantamento.
- Não será um paradoxo que a obra de Beethoven, compositor de grandes rompimentos estéticos e de superação de limites face às técnicas de composição da sua época, seja hoje um dos principais «garantes» do cânone nas salas de concerto?
APV – Foi justamente a partir de Beethoven que durante o século XIX se verificou a gradual constituição do cânone musical ocidental. A sua música, a sua figura e o seu tempo – a mudança de paradigma entre o antigo regime e a Revolução Francesa – tornaram-no “o momento” nuclear da própria constituição progressiva do cânone. Beethoven viveu no meio de uma transformação do mundo musical e foi agente activo dessa transformação: cume do sistema tonal, a sua realização “perfeita” e inquieto desconstrutor. Aqui reside a origem da sua centralidade. As suas fases, a superação de limites são importantes para nós, conhecedores atentos. Mas a sua primazia simbólica e fundadora exerce-se para além desse nivel, abrange uma esfera pública mais vasta que se concretiza no seu “nome”. As aspas de Taruskin, no titulo do subcapítulo Beethoven e “Beethoven” da HMO de 2005, assinalam a transformação do homem e da sua música, em algo mais: um “nome” portador de uma mitologia dos grandes titãs da arte, com um grandeza simbólica superior a si próprio e pilar da vida musical tal como a conhecemos. O cânone é instável, vai passando por algumas transformações ao longo do tempo, mas há um núcleo que têm permanecido estável. É nesse núcleo central que se manifesta a supremacia dos compositores de lingua alemã dos séculos XVIII-XIX. O cânone operático é algo diverso: inclui também um conjunto importante de compositores italianos.
- Vários estudos têm demostrado que a percentagem de obras de Beethoven nas programações musicais supera largamente a de outros compositores. Haverá Beethoven a mais na nossa vida musical?
APV: Trata-se de um processo social complexo. Depende de múltiplos factores um dos quais é tanto a grande qualidade da sua música, que captamos com a nossa percepção sensível, como o poder simbólico que se foi aderindo ao simples enunciar do seu “nome”. Numerosos agentes, no sentido amplo, colaboram nesse processo. A nossa vida musical no último meio século, no mínimo, tornou-se cada vez mais um “museu imaginário” (Lydia Goehr), uma arte de interpretação viva de um conjunto relativamente restrito de obras do passado. Beethoven é o primeiro de uma longa lista.
- Beethoven é visto frequentemente como um compositor “universal” mas talvez seja mais exacto dizer que há muitos Beethovens tendo em conta os diferentes modos de apropriação de algumas das duas obras e de um certo imaginário ligado à sua figura em diferentes épocas e contextos, não só do ponto de vista musical, mas também social, político, na cultura popular, etc. Qual é a sua perspectiva sobre mais este paradoxo? Até que ponto faz sentido falar de uma suposta “universalidade” de Beethoven?
APV: Há alguns anos diria que não seria “universal”. Diria até que não há “universais”. O seu âmbito original foi o da cultura ocidental. Mas a capacidade de irradiação do cânone ocidental foi enorme tal como a pluriferação de muitas outras práticas musicais. Tendo isso em conta, não obstante, hoje parece-me que é “universal” se associarmos a esse conceito todas as obras de arte vistas como exemplares para as várias culturas. Por outras palavras, a música de Beethoven será universal tal como o Partenon, o Taj Mahal, as Pirâmides do Egito, a Muralha da China, etc. Exemplos da arte monumental do mundo global, simultaneamente uno e diverso. Alguns usam o neologismo “glocal” para tentar enquadrar esta difícil e complexa interacção.
António Pinho Vargas
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