MIC (Music Information Center) Extratos da entrevista a Jakub Szczypa Fevereiro de 2021
Extratos
· Como começou para si a música e onde identifica as suas raízes musicais?
António Pinho Vargas: Começou pela aprendizagem de piano como terá acontecido com muitos outros na minha geração. Iniciei com nove anos, interrompi alguns anos mais tarde e recomecei já com 20. Nesta segunda fase da aprendizagem, mais séria, comecei a interessar-me pela improvisação e pelo jazz. Não havendo então escolas de jazz, nem ensino da improvisação, a componente da aprendizagem baseada na audição de discos assumiu a primazia. Uma espécie de transmissão oral através de uma via tecnológica, a gravação. Era essa a prática dos músicos de jazz. No entanto, com várias interrupções e recomeços, completei o Curso de Piano do Conservatório do Porto. Já tinha vários discos gravados nessa altura. Talvez se possa dizer que a raiz que permaneceu radicará no lado livre que a improvisação teve desde cedo. Improvisar implica certamente regras e modelos mas o mais importante era ouvir os outros músicos e participar na criação colectiva. Na altura o meu grupo de amigos músicos ouvia tanto jazz e free-jazz como música totalmente improvisada, música contemporânea e música do repertório clássico e moderno. Era uma atmosfera muito eclética e muito rica, na qual uma afinidade aparente ligava todas as práticas musicais. Claro que havia intensos debates nessa altura, aqui como em toda a parte. Só mais tarde a partir dos anos 1980 se começaram a constituir as “tribos” mais diferenciadas e, por vezes, estanques. Pelo meio de tudo isto fiz o Curso de História na Faculdade de Letras da Universidade do Porto que não deixou de ter importância directa ou indirecta naquele que veio a ser o meu percurso musical.
– Que caminhos o levaram à composição? ·
APV: No jazz dos anos 70 tocar conduziu-me rapidamente à composição, ao desejo de compor. Ainda antes do 25 de Abril de 1974 fiz parte do Anar Jazz Trio com Artur Guedes no baixo e Jorge Lima Barreto na bateria. O contacto a partir de 1976 com Rão Kyao e José Eduardo, para além dos músicos com quem tocava nessa altura no Zanarp no Porto (José Nogueira, Artur Guedes, José Martins) permitiu-me mergulhar em várias atitudes diversas no vasto interior daquilo que “jazz” designava então. Foi uma fase de muitas descobertas. Nesses grupos fui compondo. Abarcava práticas musicais que posteriormente foram adquirindo várias outras designações. Ao mesmo tempo estudava Piano com D. Hélia Soveral na Escola de Música do Porto e, no Conservatório do Porto, Composição com Cândido Lima, por sinal um grande improvisador que frequentemente tocava nas aulas nos mais diversos estilos. O seu ensino tinha uma componente intuitiva forte. Aí comecei a tomar contacto com as várias orientações estéticas e técnicas da música contemporânea. Tratava-se de entrar num mundo particular com as suas polémicas e divergências próprias. Nessa fase estudei também com Álvaro Salazar e, já nos anos 1980, comecei a frequentar os seminários de Emmanuel Nunes na Gulbenkian. A partir de 1983 comecei a gravar discos com o meu Quarteto (com José Nogueira, Mário e Pedro Barreiros), depois Sexteto (com Quico e Rui Júnior). A minha música de “jazz-que-não-era-bem-jazz” – de facto não sei bem como a definir mas sei derivar da corrente europeia da ECM – teve um certo impacto público e ocupou-me uma década e meia muito feliz. Música composta ao piano e com papel, para eu tocar com os meus músicos. Ensaiávamos uma vez por semana, quer tivéssemos concertos ou não.
Que referências do passado e da actualidade assume na sua prática musical?
APV: Muitas. Compor implica na sua essência uma colocação determinada em relação à história, implica escolhas de base sobre a linguagem musical numa dada década ou fase. Cada compositor insere-se, quer queira quer não, numa genealogia que lhe orienta o caminho. Mas devo dizer que aquelas a que posso chamar as minhas “afinidades electivas” foram variando de acordo com o tempo particular em questão. Permanece talvez uma maneira de fazer. As referências do passado “clássico” eram comuns a muitos outros colegas compositores. Ter estudado e tocado muita dessa música maravilhosa inscreveu-a no corpo. Mais tarde, numa certa fase, a música de Ligeti e a de Kurtág foram muito importantes, em particular a última fase de Ligeti, a dos Études e do Concerto para Piano, com o seu uso de tríades e escalas em combinações rítmicas complexas. Noutra fase, as ideias de Wolfgang Rihm no seu ensaio De la liberté de 1983 (na revista Contrechamps, Avangarde et Tradition) conduziram-me ainda mais para a recuperação da ideia de liberdade do acto compositivo neste campo musical, que tinha sido muito menos sublinhada na fase da música pós-serial. Nesse quadro de valores as noções de estrutura, de lógica e coerência tinham maior primazia durante todo esse período. As implicações desse ensaio foram vastas. Rihm serviu-me para considerar as atitudes face à composição de outra maneira, admitir a inquietude que tinha estado sempre presente. Primeiro, em relação à hegemonia pós-serial – questão distinta da qualidade de muitas das obras desse período – que dominava o ensino da composição em Portugal, razão pela qual fui estudar para a Holanda em 1987. Posteriormente, já depois de 2005, quis estudar “a ausência da música portuguesa no contexto europeu” na minha Tese de Doutoramento publicada no livro Música e Poder (Almedina, 2011). É sem dúvida muito marcada há séculos a sua pouca irradiação e circulação, de resto comum a outros países europeus periféricos face à grande hegemonia dos países centrais. Esta questão é cultural e social, revela a importância notória das hegemonias existentes no campo musical, mas não deixa de ter reflexos patentes na “condição” dos compositores.
. No seu entender, o que pode exprimir e/ ou significar um discurso musical?
APV: A música é uma arte do tempo. Então um discurso musical será aquilo que o ouvinte, dotado da sua percepção sensível e da sua própria biografia auditiva enquanto ouvinte, consegue captar no momento da audição. Na actual fase de muitas estreias e poucas reposições ou novas interpretações é o discurso que cada obra de um compositor é capaz de produzir, enquanto música, que conduz o ouvinte durante o desenrolar temporal de cada obra. Muitas vezes me pareceu que o momento da estreia de uma obra podia muito bem ser o único em situação de concerto. Diga-se que nem sempre aconteceu com algumas obras minhas que foram executadas mais vezes, mas não deixa de ser mais comum. Pode-se dizer que cada obra conta uma história diferente, desenha uma atmosfera sonora própria, constrói uma “coisa” específica (ein Ding na terminologia Heideggeriana) que tem um título.
· O que entende por “vanguarda” e o que, na sua opinião, hoje em dia pode ser considerado como vanguardista?
APV: O conceito de “vanguarda” aplicado à música é fundamentalmente histórico. Remete para as vanguardas artísticas do início do século XX e para as vanguardas musicais do pós-segunda guerra mundial. Creio que esse estatuto, esse slogan, não é reclamado com muita frequência nos dias de hoje, tanto quanto sei. Há uma diferença entre o uso do termo neste sentido preciso e o seu uso corrente. Neste último talvez aflore nos discursos. A ele está associado ainda um certo prestígio cultural. Não sei se um determinado estilo musical de acordo com pressupostos eles próprios já com muitas décadas pode usar essa denominação. Muitos livros foram publicados sobre esse assunto. Mas há muitos compositores que prosseguem de novas maneiras esse legado, sem dúvida muito importante. O principal argumento é arte que vai à frente em direcção a um “futuro”. Sempre teve uma forte conotação política. No início do século XX o termo circulava indiscriminadamente entre a vanguarda política da classe operária, o partido, e as vanguardas artísticas igualmente defensoras do homem novo, da construção do homem novo. Malevich é um dos casos paradigmáticos. Não por acaso, a atmosfera artística da Rússia pouco antes e sobretudo depois da Revolução Russa vivia intensamente em torno desse conjunto de ideias até aos anos 30. Uma exposição que pude ver na Holanda em 1989-90 tinha como título genérico A Grande Utopia. Esse será talvez o desejo implícito que pode persistir nas artes em geral e na música certamente também.
· Caracterize a sua linguagem musical sob a perspectiva das técnicas/ estéticas desenvolvidas na criação musical nos séculos XX e XXI, por um lado, e por outro, tendo em conta a sua experiência pessoal e o seu percurso desde o início até agora.
APV: Devo dizer que nunca procurei explicar muito do ponto de vista das técnicas as minhas obras. Há um grupo de compositores que analisam e descrevem os métodos e as técnicas e há outro grupo que prefere falar principalmente sobre as suas intenções. Pertenço claramente ao último grupo. Julgo que cada obra é uma “coisa” que fomos capazes de fazer, uma espécie de artesanato que no final pode produzir uma significação que nos ultrapassa. Torna-se algo que existe por si ou pode não existir e nesses casos retiro-as. É contingente, misterioso e por vezes incontrolável, implica um saber que se foi acumulando com muito trabalho, mas existindo de acordo com as forças internas que cada uma desencadeia. Nem sempre foi assim. No início escrevi algumas peças usando séries para instrumentos solo e duos. Destas manteve-se Três Fragmentos para clarinete solo estreada em 1985 por António Saiote. Ainda hoje deve ser das mais tocadas e gravadas. Mesmo usando séries como ponto de partida procurava sobrepor várias formas seriais com relações de complementaridade e com regras inventadas para cada obra. Depois no período do estudo na Holanda procurei encontrar outros tipos de linguagem musical, ainda cromática mas já com gestos condutores do discurso. Destas obras a mais importante será talvez Mirrors para piano de 1989-90. Foi igualmente muito gravada e tocada por vários pianistas em vários países. O título remete para outros compositores que pairam por cima, modelos dos quais retirava um ou outro aspecto e procurava desenvolver de forma autónoma.
Com Monodia – quasi un requiem de 1993, Nocturno/ Diurno de 1994 e as Nove Canções de António Ramos Rosa de 1995 começou a fase com a primazia de ideias de base independentes em cada caso, já muito mais livres e iniciou-se aquilo que mais tarde se tornou característico: aparecimento de alguns aspectos tonais, por vezes o que posso designar por “aparições Wagner”, uso de fortes contrastes e de várias linguagens-tipo numa só obra, enfim, aquilo que era então designado por pós-modernismo, um conceito, diga-se, que nunca chegou a estabilizar-se completamente. No essencial defendi então “uma pequena teoria para cada obra” enquanto elaborada no próprio acto da composição, em permanente autorreflexão, sem querer dar a esta expressão demasiada ênfase. Esta atitude, este “método”, permaneceu nas várias óperas, nos Estudos e Interlúdios de 2000, nas três obras para coro e orquestra (Judas [2002], Requiem [2012], Magnificat [2013]), em Six Portraits of Pain de 2005 e numa série de obras para orquestra que seguiram: Onze Cartas (2011), o Concerto para Violino (2016), o Concerto para Viola (2016), até à Sinfonia (subjetiva) de 2019, entre outras.
· Há algum género/ estilo musical pelo qual demonstre preferência? ·
APV: Não propriamente. O que houve, como tentei dizer, foi uma orientação do trabalho em diferentes direcções ao longo do tempo. Uma fase de música de câmara, depois uma fase de várias óperas, seguindo-se um conjunto de várias obras para coro e orquestra e finalmente sobretudo obras para orquestra. Em cada uma destas fases houve de facto uma predilecção em relação a géneros mas esta é uma constatação a posteriori. Em boa parte resultou da interacção com a vida musical e as suas instituições. Acima de tudo compor é um trabalho. Mas corresponde a um desejo de fazer. Há um belo poema de Akhmátova sobre o escrever que começa: “No início um certo mal-estar”. É o que sucede muitas vezes.
· No que diz respeito à sua prática criativa, desenvolve a sua música a partir de uma ideia-embrião ou depois de ter elaborado uma forma global? Por outras palavras, parte da micro para a macro-forma ou vice versa? Como decorre este processo?
APV: De uma forma geral a minha tendência predominante foi partir de uma ideia de base ou de uma metáfora inicial. Mesmo nas obras com texto a composição muitas vezes deriva em boa parte da leitura do texto, ou do libreto, ou dos poemas, como já referi. Estabelecer o texto final era já parte do trabalho composicional. Depois, a música entretanto começada, lança no terreno as suas próprias determinações, as suas forças, cria uma necessidade de continuação ou de corte, etc.
A forma, assim vista como um campo de possibilidades em aberto, ia sendo constituída no decurso da própria composição. Antes de começar a definir a ideia e os materiais (gestos, figuras, narrativas) só vagamente havia uma ideia de forma pré-estabelecida. No entanto, a forma, uma vez vislumbrada e uma vez auto-organizada pela condução do discurso musical, tem fortes implicações nas proporções globais ou nas relações entre secções e entre os materiais. A ideia de base pode ser uma linha, uma sequência de acordes, uma ideia de contraste – esta foi recorrente – entre uma massa sonora de um tipo e outra de outro tipo, uma predominância de uma certa figura no sentido amplo do termo, etc.
· Como na sua prática musical determina a relação entre o raciocínio e os impulsos criativos ou a inspiração?
APV: Na minha perspectiva essa separação não corresponde completamente à realidade do acto criativo. Nem o mais intuitivo dos compositores (ou artista) consegue impedir-se de pensar. Nem o mais racional ou sistemático dos compositores poderá impedir impulsos. Qualquer dos caminhos é válido para tentar conseguir uma singularidade: uma obra. Desse modo a razão e os impulsos criativos coexistem e formam um todo. Sentir e pensar coexistem e interligam-se nos humanos de forma complexa como nos tem demonstrado amplamente António Damásio. Assim sendo na minha prática não posso determinar essa relação entre os opostos colocados desse modo. Constato a sua existência simultânea e inexorável. Dito isto, a força das ideias tradicionais de razão ou de inspiração nos lugares comuns é muito grande e tende a produzir muitos preconceitos extremados nos dois sentidos. O compositor romântico imaginado seria um exemplo do homem que se deixa conduzir pela inspiração. Existe toda uma literatura sobre isso: “Chopin e a chuva lá fora”. Não foi assim na verdade. Digo “Chopin” e há um homem completo que esse nome refere. As ideias e o imaginário do seu tempo é que valorizavam muito o papel da intuição e/ou da inspiração artística. Do lado oposto o compositor racionalista elabora o seu programa, nos casos mais radicais, o seu algoritmo e a obra, a peça musical é uma decorrência quase automática dele. Nunca foi essa propriamente a minha predileção. De cada vez que começava uma nova peça o tempo que levava a constituição da ideia de base era em geral muito grande. A partir daí começava um outro trabalho que essa ideia ou essa metáfora conduzia já em termos musicais, de materiais específicos, predominância de intervalos, etc. É um trabalho insano, contingente, inseguro, feito de tentativas e erros. Definir os materiais, transformá-los, organizar uma forma, respeitar as tensões-distensões criadas, etc. E no entanto, nesse esforço, pensa-se. Não há outra maneira. O compositor é um fazedor. É no seu fazer que experimenta, tenta, elabora, organiza, testa, corrige, etc. É o que penso. Não há nenhum sistema que assegure, por si só, a qualidade de uma obra, nem nenhuma inspiração que, por si só, consiga produzir uma obra musical ou uma obra de arte. Trata-se de um processo complexo não redutível a essa oposição. Suspeito aliás que a maior parte dos compositores sabe isso muito bem. Um ir e vir persistente. Deste ponto de vista a minha posição não mudou muito ao longo do tempo.
· Quais as obras que pode considerar como pontos de viragem no seu percurso?
APV: Faço um esforço de auto-análise e de memória. Talvez o grupo de obras que já referi entre 1993 e 1995, o quarteto de cordas Monodia – quasi un requiem, Nocturno/ Diurno (originalmente para sexteto de cordas mas mais tocada na versão para orquestra de cordas) e Nove Canções de António Ramos Rosa, marque uma primeira viragem; mas seguramente Judas (secundum Lucam, Joannem, Matthaeum et Marcum) (2002) – obra sem a qual não haveria Requiem (2012), Magnificat (2013) e mesmo De Profundis (2014) – e finalmente de Six Portraits of Pain de 2005 até às obras para orquestra dos últimos anos.
· Em que medida a composição e a performance constituem para si actividades complementares? ·
APV: Julgo que tocar em público permite perceber uma série de aspectos importantes sobre tudo aquilo que influencia o acto de tocar, talvez não imediatamente óbvios. Por exemplo, a qualidade do instrumento. Toquei em pianos muito bons e alguns maus. Depois a presença do público transforma o acto de tocar em casa numa performance com outra dimensão. Ainda a acústica das salas, a temperatura, a hora do dia, a disposição individual, etc. Existe uma grande quantidade de factores externos que têm sempre um grande peso. Se muitas vezes refiro que compor é um acto contingente, ainda mais se pode dizer o mesmo da performance. A música é uma arte performativa. Envolve sempre uma hora, um dia, um local, etc. Mas quando tocava em público tocava a minha música escrita para os meus grupos de “jazz”, Quarteto, Sexteto, etc. Ou seja, uma determinada prática musical. Compor na tradição de mil anos da música escrita europeia é fundamentalmente diferente. Em 1989 escrevi a pedido do querido amigo, o saudoso Dr. Carlos de Pontes Leça um artigo sobre as relações entre o jazz e a música contemporânea para a revista Colóquio-Artes (n.º 85-1990) da Fundação Gulbenkian, hoje extinta. Posso relembrar duas passagens do início: “Comecemos pela constatação mais evidente: o jazz e a música contemporânea constituem dois universos separados. Cada música tem a sua história, os seus heróis, os seus mitos, a sua ética, a sua literatura, a sua crítica especializada, o seu público…; A própria organização da vida musical tem em conta esta classificação […]”. Sendo esta a minha convicção profunda, tentei manter separadas as duas esferas. Julgo que tive desde cedo uma percepção aguda dessas diferenças e das suas razões de ser. O que é comum a todas as práticas musicais tanto numa experiência performativa como numa outra composicional é facto de o acto de tocar ser sempre tão contingente como o acto de compor. Dito isto o lado performativo é sempre idêntico. Todos os intérpretes, todos os músicos, sabem isso. Determinações externas, a sala ou o local, a acústica de cada uma, a temperatura, a hora do dia e outros aspectos incluindo os mais secretos (hoje não estou bem, hoje foi melhor do que ontem, etc., fazem parte das frases que todos já ouvimos ou dissemos). Uma orquestra, um ensemble, um coro, por melhor que seja, por mais exacto e preciso que seja, de cada vez que executa, toca, interpreta, grava “takes” para um disco, não o faz duas vezes da mesma maneira. Tudo isto pressupõe a consciência da contingência. As obras são as mesmas (nas partituras) mas é da sua natureza ser realidade sonora apenas quando são interpretadas (o que se verifica sempre excepto na música electrónica e mesmo aí existe a figura do difusor…). Ouvir uma mesma obra minha executada, nem que seja no dia seguinte, revela-se sempre diferente. Entre outras razões é justamente pelo facto de nunca existirem interpretações definitivas que a música do passado se tornou uma arte de interpretação viva de obras do passado. Deriva igualmente deste facto a possibilidade de cada obra musical “poder-ser-sempre-outra-vez”. Nem sempre acontece, mas isso deriva de múltiplos factores externos. O próprio “destino” das obras é pleno das mais variadas contingências. Todos sabemos. No entanto nas obras que retiramos do catálogo somos nós próprios que assumimos um ponto final. O trabalho não correu bem, retira-se.
· Conforme a sua experiência, quais as diferenças entre o meio musical em Portugal e em outras partes do mundo?
APV: Há algumas décadas havia grandes diferenças sobretudo em relação aos meios musicais de vários países europeus, uma diferença notória entre a vida musical dos países centrais e a dos periféricos como o nosso. Hoje é evidente a melhoria global do panorama português tanto na qualidade do ensino, na qualidade dos músicos, na qualidade das orquestras, até mesmo das salas de concertos. Foi muito importante o aparecimento de um conjunto de novas instituições culturais do Estado que foram surgindo na década de 1990 sobretudo, o que permitiu gradualmente equilibrar mais aquelas antigas diferenças. Há diferenças ainda, é certo, mas anteriormente havia um verdadeiro fosso. Nos anos 1970 e 1980 contavam-se quase pelos dedos os compositores no activo e algumas orquestras estavam em crise. Passo a passo isso foi mudando e actualmente há muitos mais compositores e a existência recente da figura do “compositor emergente” é um sinal óbvio da grande melhoria. Mas há ainda aspectos que poderão melhorar especialmente a persistência das obras para além da sua estreia.
· Como vê o futuro da música de arte? ·
APV: Não é possível antever aquilo que virá. Especular sobre o futuro deu origem a imensos equívocos e posteriores desmentidos da realidade de previsões como a do fim da arte, do fim da música clássica, etc. Os livros existem e podem confrontar-se essas previsões com aquilo que entretanto se verificou. O real é determinado pela acção dos humanos, verdadeiros agentes de transformação potencial e por um conjunto de decisões institucionais, opções políticas e mudanças sociais de paradigmas. Declarações de morte anunciada ou de futuro radioso são tremendamente arriscadas. Não é possível ir mais além do que algumas convicções individuais. Muitas vezes, por trás dessas declarações sobre o futuro da música, esconde-se uma certa ideia do presente. É muito evidente. O alarme de alguns teóricos sobre “a morte da música clássica” ou “a crise da música contemporânea”, deve ser visto à luz do conceito de morte da arte formulado por Hegel. A “morte da arte” de Hegel sublinha apenas, na minha opinião, a morte de um “certo modo de ser arte” e o fim de um certo modo de articulação com o todo social, historicamente delimitado, destinado a ser substituído por outro. Por tudo isto penso que o futuro reservará surpresas e realidades que não podemos prever. Está em jogo um grande número de variáveis de vastas implicações. Dito isto a respeito do tempo longo futuro, veremos até que ponto chegarão as consequências da terrível pandemia, até agora devastadoras para o campo cultural em geral. Como tem sido dito “o pior ainda está para vir”. Neste caso é infelizmente uma forte possibilidade a curto e médio prazo.
António Pinho Vargas, Fevereiro de 2021
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