Diário de Notícias, Bruno Horta, 4 de Dezembro 2023

“Houve uma política cultural própria da Guerra Fria, como é [hoje] evidente”
Aos 72 anos, o compositor António Pinho Vargas, acaba de lançar um disco, Lamentos, com três peças, de 2015 a 2019, gravadas em maio último no Centro Cultural de Belém, em Lisboa. Motivo para uma conversa com o DN sobre a influência da política na música, as opções dos programadores culturais e os efeitos da pandemia.

Fala devagar, pensa muito o que diz e desvia-se facilmente do assunto. Uma mente inquieta. Aos 72 anos, António Pinho Vargas está preocupado com a sua saúde e o estado do mundo, mas claramente orgulhoso do novo disco, Lamentos, que chega às lojas com carimbo da editora Artway. Estudou História na Faculdade de Letras do Porto e vem a tornar-se músico de jazz na década de 70, com formação em música clássica no Conservatório do Porto e no Conservatório de Roterdão. Muitos ainda o recordam como autor de Dança dos Pássaros, tema que há mais de três décadas era intensamente exibido na RTP. Mas tanta coisa se passou desde aí… Deu aulas de Composição na Escola Superior de Música de Lisboa entre 1991 e 2019 e tornou-se um dos mais reconhecidos autores portugueses de música erudita.

O que traz nesses cadernos, que segura com tanta firmeza?
Trago notas… São agendas não organizadas. Escrevo ideias, afazeres. Às vezes, ideias de peças, possibilidades musicais.

Só a ideia ou já a notação musical?
Não é preciso a notação, só a ideia, acompanhada de termos musicais, como fermata, crescendo… Também posso escrever muitos números, números de compassos.

São os famosos cadernos Moleskine?
Exatamente. Comecei a usá-los ainda mais no período do meu doutoramento, entre 2005 e 2010. Nessa altura eram uns 30 e tive de os numerar, para não me perder. Desta vez anotei aqui algumas ideias que queria transmitir nas entrevistas que estou a fazer a propósito do novo disco. Apontei coisas que não me queria esquecer de dizer.

Como por exemplo?
Nas circunstâncias da minha vida dos últimos anos, incluindo o período da pandemia, assistir às gravações deste disco no CCB, em maio deste ano, provocou-me uma sensação de regresso a um mundo a que tinha achado que dificilmente voltaria.

A pandemia foi especialmente traumatizante?
Quatro ou cinco meses antes do início da pandemia [março de 2020] tive uma doença que me afetou o ouvido esquerdo, o que me obrigou a reformar mais cedo do que previa. Deixei de dar aulas. Tive de gerir a minha situação pessoal, que era dura, com o apoio de alguns amigos e colegas da Escola Superior de Música. E de repente o mundo pára. Sabe o que sinto hoje? Na altura muita gente escrevia nos jornais a dizer que nada seria como antes, que era preciso aprender as lições da pandemia, interrogar o nosso modo de vida e os seus excessos. Mas agora que a pandemia acabou, de tal maneira que já nem se fala nisso, sinto que ninguém aprendeu nada com aquele período.

O nosso modo de vida deveria ter sido alterado?
O modo de vida ocidental, de predador dos equilíbrios da natureza, o modelo de desenvolvimento ocidental, que dá primazia à globalização, tudo isto está ligado à expansão da pandemia. O vírus viajou de avião, digamos. Afinal, foi possível parar, não andar de automóvel ou de avião, fazer cessar o ruído… Aliás, o ruído aqui em Lisboa foi uma coisa que me afetou durante anos. Vivia na Lapa, perto da Avenida Infante Santo. Havia ali uma linha de aviões a passar de três em três minutos.

Afinal, viveu em Lisboa. Muita gente pensa que esteve sempre estabelecido em Gaia.
Não, comprei cá casa em 1994. Estava a dar aulas na Escola Superior de Música, aqui em Lisboa, desde 1991. Como a minha mulher é cravista, Ana Mafalda Castro, e tinha trabalhos em Lisboa, havia uma dupla razão para nos mudarmos para Lisboa. Nos anos 70 e durante boa parte dos 80 ia e vinha do Norte. Sabe, as estruturas da vida cultural portuguesa estavam muito centralizadas. Portugal é um país centralista, o que é negativo em certos aspetos.

Essa crítica ainda faz sentido em 2023? O mundo está globalizado, digitalizado.
Faz menos sentido do que fazia no passado, admito. Mas há um sítio que tem hegemonia por ser a capital… Só consigo encontrar um paralelo noutro país que conheço bem, França. França é o país mais centralista da Europa, como se o pensamento de Luís XIV tivesse passado de geração em geração. Para se ver o que é o centralismo na vida dos músicos franceses, o que se pode extrapolar para outros países, basta dizer que há músicos que não vivem em Paris, estão a 200 ou 300 quilómetros, mas que têm morada oficial em Paris, onde têm uma caixa postal. Consideram que a sua carreira seria afetada se dessem a morada real.

Um criador português terá dificuldades de afirmação se estiver longe de Lisboa. Mas também se estiver longe do Porto.
Sim, é verdade. É a bipolaridade. Sabe, a propósito queria dizer que vivia no Porto quando gravei os meus discos de jazz.

Quando era “músico errante”, pois já tem usado esta expressão.
Sim, nos anos 70 fui músico errante. Fiquei muito cansado. Ganhava-se pouco em Portugal e lá fora. Um músico de jazz tocava em clubes e ganhava à entrada ou tinha cachets fixos muito baixos. Depois de uma semana a tocar em Madrid ou Sevilha, regressava a casa com muito pouco dinheiro. Também era muita a curiosidade, e por isso comprava discos e livros durante as viagens. Vivia no Porto e isso não impediu o impacto nacional que a minha música teve nessa altura. Portanto, de certa maneira até posso servir de exemplo contrário daquilo que acabei de dizer sobre o centralismo.

Como é que alguém que estudou História decide tornar-se músico de jazz e depois escolhe a música erudita e no fim ainda faz um doutoramento em Sociologia. É muito curioso?
Não tenha a menor dúvida, tenho uma vontade de questionar e de querer saber. No fim até posso concluir que não existe a resposta que prendia obter. A tese em Sociologia da Música permitiu-me…

Esperava uma coisa que não obteve?
Esperava transformar. Passaram-se 10 ou 15 anos desde que defendi a tese e sei que essa transformação é quase impossível. É quase como pôr fim ao capitalismo.

Esperava transformar o quê através da tese de doutoramento?
O poder dos países centrais da Europa, não da União Europeia, no campo musical. É um poder construído sobre uma tradição rica, a música alemã, a música francesa, um pouco de Inglaterra, no século XIX a Itália. Estes são os países centrais da história da música ocidental europeia escrita. Desta tradição estão ausentes todos os compositores portugueses, espanhóis – com uma ou outra exceção -, gregos, búlgaros, por aí fora. Todos ausentes. É um fenómeno que se torna visível fazendo a investigação que fiz. Mas não pretendi apenas verificar um facto, também contribuir para o transformar. Mas é impossível transformar relações de poder enraizadas na sociedade. Não é apenas na política, é nas próprias instituições culturais. As pessoas querem ouvir sinfonias de Beethoven, de Mahler, de Shostakovich.

[É quase impossível explicar esta questão em toda a sua complexidade, em todas as suas inúmeras vertentes]

Como é que se mudaria um paradigma destes?
A resposta é complexa. O que é a música clássica? É Bach, Beethoven, Mozart, Schumann, Wagner, por aí fora. Só disse alemães, mas poderia falar de franceses: Rameau, Debussy… O Haendel, que é alemão, foi o grande compositor inglês do século XVIII porque viveu e trabalhou em Inglaterra.

São esses que as pessoas ainda hoje querem ouvir?
Sim. Se olhar para os jornais portugueses e para o gradual desaparecimento da crítica musical nos jornais de referência… Os jornais o que fazem é analisar quem cá vem, como será a próxima temporada, os grandes artistas que vêm à Gulbenkian, a São Carlos, à Casa da Música. Isto quer dizer que está normalizada a reprodução da hegemonia de que falo. Cabe, ou caberia, aos programadores das salas portuguesas contrariarem esta tendência, conseguindo equilibrar a hegemonia esmagadora e torná-la menos esmagadora.

Quem programa sabe que o público quer aceder a um certo estatuto por assistir aos autores canónicos e por isso não saímos do que é esperado. É isto?
O próprio ensino está vocacionado para formar grandes cantores dentro da tradição operática. As razões que alimentaram e produziram a hegemonia não se dissolveram. A música contemporânea, ou seja, a que sucedeu a esta grande tradição, passou por várias ruturas no século XX. Primeiro, em 1913, com Pierrot Lunaire, de Schoenberg, e A Sagração da Primavera, de Stravinsky. Corte modernista. O segundo corte dá-se depois da II Guerra Mundial, com financiamento dos americanos. É o corte dos vanguardistas: Stockhausen, Xenakis, Luigi Nono… Tinham todos 20 e poucos anos à época. Politicamente, era muito importante para o Ocidente – e os americanos nisso eram espertos – ter uma política alternativa, que mostrasse a diferença contra a União Soviética e a sua ideologia do realismo socialista. Uma geração de jovens compositores foi fortemente apoiada, com meios, festivais, encomendas. Estou a resumir para dizer que a interligação entre política, sociedade, hegemonias culturais e música foi incrivelmente intensa durante o século XX. Foi preciso a União Soviética desaparecer para começarem a surgir artigos que analisavam estas ligações, quem financiava os festivais, com que objetivo. A minha investigação deu muito trabalho mas foi bem feita.

Portanto, como ao longo do século XX não se formou novo cânone, a tradição da música erudita manteve-se inalterada. Que nomes dos países do Sul poderiam ter ascendido?
Colegas musicólogos dizem que se Luís de Freitas Branco fosse francês ou inglês, seria tocado em todas as salas. Joly Braga Santos a mesma coisa.

Parece que não concorda.
Não estou a dizer que não concordo, mas este é um discurso lamentoso face a uma realidade que desaponta. A meu ver, não se responde a uma hegemonia com um discurso lamentoso. O lamento pressupõe a aceitação da realidade. Aqui entra o conceito de ideologia sedimentada, quando uma coisa cria raízes profundas nos hábitos e nos gostos. E há outra coisa: aquela música dos séculos XVIII e XIX, quando a Alemanha não era um país mas uma língua e uma cultura, é maravilhosa, é uma música maravilhosa praticamente impossível de superar. Tudo o que aconteceu depois foi sob a sombra de uma tradição esmagadora. Repare: não há nenhum paralelo de hegemonia desta natureza no campo literário, por exemplo. A única hegemonia comparável é a do cinema americano, também ela resultante do Plano Marshall, com uma cláusula a dizer que a Europa tinha de passar uma quota de cinema americano. E a hegemonia criou-se.

As ligações entre criação cultural e interesses políticos são desejáveis, indesejáveis ou são o que são?
São o que são. São inevitáveis e muitas vezes laboram numa zona obscura da qual muita gente não tem sequer consciência. Muito do que estou a dizer não é sabido. E já fui severamente contestado nos últimos anos, nomeadamente quando falava da influência da Guerra Fria no aparecimento da vanguarda do pós-guerra. Está documentado, desde logo no livro O Resto é Ruído, de Alex Ross. Houve uma política cultural própria da Guerra Fria, como é evidente. A vanguarda musical europeia, o expressionismo abstrato americano do Jackson Pollock e do Rothko, mais o John Cage e o Morton Feldman. Tudo isto teve uma importância subliminar no enfrentamento da ideologia decadente e repressiva do realismo socialista.

Voltemos aos seus cadernos. Sempre foi assim que criou música? A partir de ideias que descreve por palavras em cadernos?
Não. A primeira fase, dos meus discos de jazz, da Dança dos Pássaros, tudo isso, foi feita a compor ao piano. Nas primeiras músicas, anos 70, tinha algum receio. “Isto não é bem jazz”, pensava. Gradualmente, recebi incentivos de colegas e comecei a compor com mais à vontade. Era uma forma de compor audiotátil, digamos assim. No Conservatório estudava Mozart, Beethoven, ou seja, o cânone musical, para poder aprender piano. Quando, em 1972, descubro músicos de jazz como Herbie Hancock e Keith Jarrett, quis fazer como eles. Conheci o Jorge Lima Barreto, que vivia no Porto. Não havia escolas de jazz, e ainda bem. Assim estudei Bach e Mozart.

Hoje a sua criação é mais intelectualizada e menos audiotátil?
Não propriamente, mas deixou de ser, isso sim, tão dependente do ato de tocar. Os professores do conservatório ensinavam-nos à maneira de Darmstadt: técnicas intelectuais de especulação com uma lista de notas.

Porquê Lamentos como título do seu novo disco?
A palavra “lamentos” tem uma história dentro da história da música. Monteverdi tem uma peça que se chama Lamento d”Arianna. Em França, quando morria algum aristocrata ou um colega compositor, outro escrevia um tombeau”. Os meus Lamentos surgem desta tradição.

Ou seja, o disco não corresponde a um estado de espírito lamentoso?
A escolha do título é posterior à gravação das peças. É um título que unifica três peças compostas em períodos diferentes. Há outra coisa que tenho de dizer: na minha fase de músico de jazz, no primeiro disco, compus uma peça chamada Quedas de Água (Com Lágrimas), no segundo disco há uma intitulada Olhos Molhados, e tenho uma peça no quarto disco chamada Brinquedos, que é um choro sobre a infância perdida. Tive depressões na vida, fortes. E assumi-o publicamente nos anos 80 em algumas entrevistas, o que foi uma surpresa para muita gente. Hoje o estigma é menor, mas naquela época era fora do comum.

Aos 72 anos é uma pessoa preocupada?
Estou preocupado com a minha própria vida. Ela já me mostrou nos últimos anos que é frágil. Tenho que ter cuidado. O meu pai morreu com 60 anos. Já tenho mais 12. É uma coisa em que se pensa.