Entrevista ao Jornal de Negócios 30 de Novembro 2023
Filipa Lino e Miguel Baltazar – Fotografia

O pianista e compositor António Pinho Vargas encerra em si uma parte da história da música em Portugal. A sua discografia é variada. Passou pelo jazz, pela ópera, pela música de cariz religioso…Mas não é só a música que o define, sublinha. É um leitor e um observador do mundo. A política, que tanto o entusiasmou quando era estudante na Faculdade de Direito de Lisboa, onde se envolveu nas lutas estudantis, continua a agitá-lo. Hoje assume-se como “independente de esquerda” porque desconfia do funcionamento dos partidos. Aos 72 anos, ainda sente uma “inquietação criativa”. O seu mais recente disco “Lamentos”, foi editado este mês pela Artway Next e conta com a Orquestra Metropolitana de Lisboa e direção do maestro Pedro Neves. Foi por aí que começámos esta conversa.

Chamou ao seu disco “Lamentos”. O que é que lamenta nos dias que correm?
Há muitas razões para lamentar. O estado do mundo é pavoroso! Na história da música erudita de tradição europeia do século XVIII, há imensas peças francesas intituladas “Tombeau de…” (Túmulo de…). Eram peças fúnebres dedicadas a pessoas que já tinham morrido. Uma das peças no meu disco, o “Concerto para Violino ‘in memoriam’ Gareguin Aroutiounian”, é dedicada a um grande violinista da Orquestra Gulbenkian, de quem gostava muito. Essa peça termina com um lamento que, na minha opinião, é deslumbrante. Então, o lamento começou por ser o andamento final dessa peça. Depois, por outras razões, também escolhi para o andamento central do “Concerto para Viola” o título de lamento. Tem que ver com a metáfora exterior à música que usei, que foi o livro de Jó, do Antigo Testamento, na Bíblia.

Que é ele próprio um lamento.
Absolutamente. Trata-se de um homem a quem acontece uma sucessão de desgraças. O lamento é o momento em que ele entristece profundamente com o que lhe está a acontecer.

Diria que o seu disco é triste?
A música tem um lado emocional tão forte que pode comover as pessoas até ao choro. É nesse momento que mostra a sua tremenda eficácia emocional e comunicacional, porque sem palavras é capaz de pôr uma pessoa a chorar.

Para si a criação musical tem alguma ligação com o divino?
Eu não sou crente, apesar de ter lido a Bíblia com 15 anos. Mas escrevi muita música religiosa para coro. Não sou crente, mas pertenço a uma cultura, na qual assentam as bases da nossa civilização, que é a cultura judaico-cristã. Essa cultura tem como textos fundadores os gregos, sem dúvida, mas também a Bíblia. A música comove de uma forma extraordinariamente misteriosa. Há qualquer coisa secreta na relação entre as notas que, de repente, quase sem sabermos exatamente porquê, começamos a sentir um aperto. Nesse sentido, em vez de divino, eu diria que a música permite que a pessoa tome conta da sua existencialidade. A pessoa existe e às vezes, pela música, toma conta da profundidade do que significa estar vivo.

Como surgiu, por exemplo, a “Dança dos Pássaros”, que lançou nos anos 1980?
Comecei a compor essa peça em 1984, quando dava aulas de piano a jovens alunos que estavam a chegar à adolescência. Comecei a compô-la no intervalo entre duas aulas e isso durou uma quantidade de meses. Nesse caso, o material musical existiu em primeiro lugar, só por si. Quase independente de qualquer ideia e sem título. O processo foi inverso. Eu tinha uma música, que estava ali, tinha um certo caráter e precisei de lhe dar um título que tivesse sentido. Nunca dei um título de ânimo leve. Todos os meus títulos querem dizer alguma coisa.

Nesse caso, o que queria dizer?
Queria dizer que aquilo era uma coisa linda. Que a Natureza tem coisas lindas. Uma dança de pássaros é algo que todos vimos algumas vezes na nossa vida. Mas o quotidiano é tão complicado que nem sempre nos abre espaço para simplesmente olhar para o céu e ver um bando de pássaros a voar. Em 1985, eu já tinha tido as minhas coisas difíceis, as minhas fases duras da vida, que me permitiram valorizar o olhar para a Natureza. Tenho a sensação que, se calhar, o sofrimento nos ensina a valorizar isso. É preciso ter passado por qualquer coisa negativa, qualquer coisa que nos mostrou que o mundo existe, que nós não somos o centro dele e que é um privilégio estar vivo. De década para década, no meu caso já são sete, há coisas que se vão transformando em nós. Nada fica igual. O que eu penso hoje é muito diferente do que pensava quando tinha 30 anos.

E como músico também sente que mudou?
Sim, muito. Sinto que continuo a mudar ainda hoje. Estou com uma espécie de inquietação criativa. A vontade de produzir obriga-nos a pensar outra vez e isso até implica uma vontade da rutura com algum do passado. Pensar: Ok. Eu fiz aquilo, não renego. Mas quero outra coisa.

O jazz é muito importante na sua carreira musical.
No início foi. Fazia músicas para eu próprio tocar com os meus grupos de jazz lá no Porto e ao mesmo tempo estudava piano. Passava horas a estudar, por exemplo, certas coisas da maneira de tocar do Chick Corea, que era um pianista norte-americano que eu admirava imenso e, na semana seguinte, podia estar com os amigos a ouvir um disco de música eletroacústica do Xenakis. Tinha entre 18 e 25 anos e estava a descobrir. Juntávamo-nos em casa uns dos outros a ouvir música. Esta curiosidade era ampla. Tinha o jazz, a música contemporânea e até outras músicas, de que gostávamos.

Mas antes de ser músico, começou por estudar Direito, em Lisboa.
O meu pai queria que eu tirasse o curso de Direito porque os meus irmãos mais velhos tinham estudado. O meu irmão era médico e a minha irmã tirou o curso de Biologia, em Coimbra. Eles eram da geração dos anos 1950. O meu irmão andava de fato e gravata e eu era dos anos 1960, tinha cabelo comprido. Houve um corte geracional entre nós. Quando eles estavam na universidade, eu ainda era um adolescente.

A música fazia parte do seu projeto de vida, nessa altura?
Não. Embora eu tivesse estudado piano, por incrível que pareça, não pensava na música como um modo de vida. Talvez tenha aceitado ir para Direito por uma questão de autoridade parental. Na altura [antes do 25 de Abril], ser músico não era bem visto. Eu já estava a gravar discos nos anos 1980 e ainda me perguntavam: O que é que tu fazes? Quando respondia que era músico, diziam: sim, mas a sério. Além disso, qual é a tua profissão? Aquilo não contava! Havia um estigma social associado à música. Portanto, na minha adolescência, isso não fazia parte de qualquer plano.

Como foi estudar Direito em Lisboa?
Quando terminei o liceu, tocava numa banda rock de garagem chamada A Grelha. Mas saí para vir estudar para Lisboa, no ano letivo de 1970-1971. Só que me desapontei com o curso e meti-me nas lutas estudantis. Lembro-me de ter corrido a Alameda da Universidade por ali abaixo com a polícia de choque atrás de nós. Tínhamos de fugir, senão apanhávamos pancada. Eu conheci o Ribeiro Santos, um dos alunos da Faculdade de Direito que, dois anos depois, foi morto pela PIDE. Fiz parte – juntamente com o meu amigo Filipe Carneiro, ambos alunos do primeiro ano – da lista que se chamava “Ousar Lutar, Ousar Vencer”, que concorreu às eleições para a associação de estudantes na Faculdade de Direito, nesse ano. Conheci o Ribeiro Santos nesse contexto. Ele estava no terceiro ano, era um pouco mais velho.

Sentia-se a presença da PIDE na Faculdade?
Sentia-se mais quando eu ia à pastelaria Granfina, em Entrecampos, porque era o sítio onde ia o Eduardo Prado Coelho e o Lauro António. Como nós gostávamos muito de cinema, eu e o meu amigo Filipe Carneiro quisemos ir lá. Passámos a ir a uns colóquios que começavam a discutir cinema e acabavam a discutir política.

A estada em Lisboa durou pouco. Desistiu do curso três meses depois.
Quando regressei ao Porto, nas férias do Natal, tive uma conversa com o meu pai para lhe dizer que queria mudar de curso… Depois fui à Faculdade de Letras da Universidade do Porto para mudar para História. Cheguei à secretaria e disseram-me que o prazo tinha terminado dois dias antes. Isso implicou ficar o resto do ano letivo à espera para poder mudar de curso. Ia de vez em quando a umas aulas na Faculdade de Letras, ia a umas reuniões de estudantes. Aqueles três meses em Lisboa não caíram em saco roto, porque semearam coisas em mim, do ponto de vista da visão do mundo, que nunca mais desapareceram. Criaram um quadro que me enriqueceu pessoalmente. A política era uma coisa que também se estudava, sabe? A seguir ao 25 de Abril lembro-me que ia para casa ler os livros de Jean-François Lyotard e do Guy Debord para [preparar] as nossas discussões no café com os maoistas, que defendiam o conceito de música ao serviço do povo. Eu nessa altura já era músico de jazz e quis preparar-me para esses debates em termos teoricamente mais sólidos.

Mas naquele compasso de espera, até entrar em História, o que aconteceu?
Voltei a tocar com o grupo rock e comecei a ouvir jazz. No ano letivo seguinte, fui para História e, ao mesmo tempo, comecei a estudar piano. Tinha estudado entre os 9 e os 12 anos, sabia tocar um bocadinho, mas os músicos de jazz têm qualidade e senti que precisava de voltar a estudar. Ao estudar piano, de repente, começo a tocar Mozart, Debussy… e começa a entrar toda a história da música ocidental, que conhecia vagamente. Passei a conhecê-la da melhor maneira possível, que é a tocar. E a minha vida mudou.

Foi importante cruzar a História com a música nessa fase da sua vida?
Não. A História era o curso que eu estava a fazer por causa do tal estigma. Tinha de ter um curso superior. Música era aquilo que eu estava a descobrir e a começar a atribuir importância. Tocar música em 1972 não era o mesmo que tocar música em 2014 ou 2015. Era outra coisa. Tudo tinha um peso. No meu grupo de amigos, a certa altura, tomámos conhecimento com o Jorge Lima Barreto, que era um grande divulgador de jazz. Ele tinha escrito o livro “Revolução do jazz”, que para nós foi muito importante. Depois havia um livro francês chamado “Free jazz/black power”, escrito por Philippe Carles e Jean-Louis Comolli. Aquela ligação entre a música e a política fez com que, de repente, a música deixasse de ser uma coisa sem interesse. Aos meus olhos, a música passou a ser uma coisa importante, que podia contribuir para mudar o mundo. Era a grande ilusão. Comecei a tocar “free jazz” e ouvia os discos do Cecil Taylor. Isto em 1972 era um escândalo! A seguir, houve uma pequena fase em que tivemos um trio, o Anar Jazz Trio. Era eu no piano, o meu amigo contrabaixista Artur Guedes e o Jorge Lima Barreto na bateria. Fizemos alguns concertos no Porto, em Coimbra e em Lisboa.

A música para si era também fazer política?
Sim. E a PIDE ia lá às vezes interromper o concerto.

Mas falavam em termos políticos?
Falávamos. O Jorge Lima Barreto considerava-se anarquista. Toda a sua teoria era um delírio. Havia grande imaginação, mas pouca solidez teórica naquela prática musical.

E o António, como é que se posicionava politicamente?
Em última análise, éramos todos marxistas. Nós, os estudantes. Não éramos comunistas, no sentido de pertencermos ao PCP. Éramos marxistas no seguimento de tudo o que vinha do maio de 1968.

No 25 de Abril, estava no Porto e tinha 22 anos. Como viveu a revolução?
Vou contar-lhe uma coisa que me disse a minha professora de piano que a vai esclarecer. Ela disse: ‘Depois veio o 11 de março e o António desapareceu!’ (risos) Para quê continuar a estudar música se Beethoven não fazia sentido? Aquilo foi uma espécie de delírio coletivo vivido com uma intensa felicidade e excesso.

E depois foi preciso puxar os pés à terra…
Exato. De repente, a realidade cai. A revolução não acontece, aquelas ideias estavam erradas ou falharam. E as pessoas colocaram-se de diferentes maneiras em relação ao desencanto. Alguns dos antigos revolucionários tornaram-se macrobióticos. (risos) Passaram a ter a mesma fé na macrobiótica que antes tinham no Mao Tsé-Tung. O José Afonso disse numa entrevista que “alguns tinham aderido à via alcoólica para o socialismo”. Esta frase é muito dura, mas muito verdadeira.

As pessoas precisaram de procurar outro polo de orientação?
Exatamente. Para mim, 1976, do ponto de vista musical, é um ano importante. Faço o exame do quarto ano do Conservatório, começo a estudar logo para fazer o sexto ano e ao mesmo tempo tentava aprender o jazz. Entretanto, tinha outro quarteto [o Zanarp] e começámos a tocar ainda nas consequências da festa do 25 de Abril. Lembro-me que viemos do Porto ver a primeira festa do Avante, na antiga Feira Internacional de Lisboa (FIL), porque veio cá o Soft Machine tocar, o Luigi Nono, um compositor de vanguarda italiano que pertencia ao PC italiano veio falar, tocou o Fernando Lopes-Graça… Estes dois mundos – música e política – eram vasos comunicantes. Falo da música de vanguarda e do jazz. Naquela altura, havia uma visão do mundo quase sem barreiras. E nós fizemos concertos em Lisboa, Coimbra, Porto. E de repente… E agora? Onde é que vamos tocar? No “luto” pós-PREC não havia salas.

A produção musical entrou em decadência?
Sim. Íamos tocar a sítios a ganhar o dinheiro das entradas. Tocávamos em Lisboa e em clubes do Porto e noutras cidades. Mas eram muito poucos. Entretanto, a partir de 1976, comecei a tocar com o Rão Kyao. Uma vez, com o quarteto Rão Kyao, aconteceu uma coisa extraordinária. Fomos fazer um concerto em Setúbal, numa praça, e no fim o organizador desapareceu com o dinheiro. O cachê foi igual a zero (risos). Isto acontecia com frequência. Entre 1976 e 1980, foram os anos sem instituições culturais no país. Depois o governo comprou o Teatro Carlos Alberto, no Porto, e começámos a tocar lá. A Culturgest começou a funcionar nos anos 1990 e foram construídos os grandes projetos do Estado, como este onde estamos, o CCB. Houve uma enorme reconstrução do aparelho de Estado no que diz respeito aos equipamentos culturais. A partir daí, começámos a poder trabalhar profissionalmente.

A cor política é importante para singrar na música em Portugal?
Eu diria que não. No presente, isso não tem peso. Em todo o caso, posso dizer que em diferentes épocas foi diferente. Portugal viveu uma circunstância muito peculiar. Teve uma ditadura até 1974 na qual vigorava uma espécie de primazia cultural da esquerda. Nessa altura, não era fácil ser um dissidente. Aconteceu com pessoas concretas, como o escritor Mário Dionísio e em parte com o poeta Jorge de Sena, pagarem um preço por não serem membros do PCP, nem simpatizantes.

Quem não viveu esses tempos, pensa que a esquerda não tinha lugar antes do 25 de Abril no panorama cultural do país.
Durante o regime da ditadura, houve uma altura em que havia uma certa ideia de cultura, que era a ideia do António Ferro [o homem da propaganda do Estado Novo]. Houve um compositor chamado Ruy Coelho que escreveu uma oratória de Fátima e que escreveu óperas que foram apresentadas no Teatro Nacional de São Carlos e que era o compositor oficial do regime de Salazar. Isto acontecia enquanto o Lopes-Graça, que estava próximo do PCP e depois se tornou mesmo membro do partido, foi expulso e proibido de dar aulas no Conservatório de Música de Lisboa, onde era professor. Isto são factos históricos. E correspondem ao paradigma que eu estava a falar. O compositor ligado ao PCP é expulso e proibido de exercer a sua atividade no ensino e por isso é que ele começou a escrever as “Canções Heróicas” para coro, fora das grandes instituições.

Mas os que eram contra o regime também conseguiam fazer a sua música?
Sim. E alguns, nomeadamente o grande compositor de sinfonias português do século XX, Joly Braga Santos, foi compondo e tendo encomendas oficiais. No entanto, não era propriamente simpatizante do regime. Considerava-se apolítico. Ao contrário do Ruy Coelho, que na própria temática das suas óperas e oratórias tinha claramente a marca do regime.

Mas disse-me que havia uma hegemonia da esquerda.
Isso aconteceu sobretudo na literatura, na fase mais tardia do regime, que corresponde ao marcelismo. A hegemonia da esquerda sentia-se, por exemplo, no suplemento literário do Diário de Lisboa.

Depois do 25 de Abril, essa hegemonia de esquerda manteve-se?
Manteve-se durante alguns anos. O desaparecimento do regime e a instauração de uma democracia liberal de tradição europeia desmobilizou aquele espírito associativo de escritores contra o fascismo. O PCP e os seus “compagnons de route” continuaram a organizar os seus eventos. Lembro-me de ter feito um concerto com o meu grupo de jazz ainda nos anos 1980 na Aula Magna da reitoria da Universidade de Lisboa, que fazia parte do Congresso Mundial para a Paz, que era organizado pelos pró-soviéticos. Mas eu não tinha problema algum em ir tocar lá porque ia tocar a minha música.

Assume-se como um homem de esquerda. Já foi filiado politicamente?
Não. Apoiei a Maria de Lourdes Pintassilgo nas presidenciais de 1986 e toquei num comício da sua candidatura no Mercado Ferreira Borges, no Porto. Também toquei na Festa do Avante três ou quatro vezes. Mas houve um ano em que fui convidado para tocar num concerto do 1.º de maio da UGT, no Parque Eduardo VII. E, no ano seguinte, já não fui convidado para a Festa do Avante.

Foi represália?
Sim. Muito discreta.

Quando diz que é um homem de esquerda, o que é que isso significa?
Tornei-me independente de esquerda por uma espécie de desconfiança básica em relação ao funcionamento dos partidos. Tenho o maior respeito pela militância, que em certos casos, no antigo regime, foi verdadeiramente heroica, com alguns mortos no meio da história, como o general Humberto Delgado. Mas eu também sabia da URSS e dos processos de Moscovo. E a revolução cultural chinesa do Mao Tsé-Tung foi uma tragédia. Foi no dia 25 de Abril de 1975, um ano depois da revolução, que eu disse: Não. Esta gente está a cometer demasiados erros.

Nesse dia, foram as primeiras eleições livres.
Sim, e eu fui votar. Vivi todo esse período pós-25 de Abril com muita atenção e ao mesmo tempo muito intensamente. Mas a partir do dia 25 de Abril de 1975 fui dar aulas e disse: eu vou ser músico. Estou atento à política, mas estou fora.

Como está a ver a atual crise política em Portugal? Está preocupado ou otimista em relação ao futuro do país?
A situação portuguesa é muito particular. É muito diferente do resto da Europa. A extrema-direita progride na Europa, vai tomando o poder lentamente e vai destruindo toda a base do Estado social europeu, que a caracterizou no pós-1945.

Pode acontecer a extrema-direita chegar ao poder em Portugal?
Não me parece. Só se conquistar por dentro o PSD. Coisa que anda a tentar fazer. Espero que isso não aconteça no meu horizonte de vida.

As sondagens apontam que o Chega vai ganhar força nas eleições legislativas em março de 2024.
É mais ou menos certo que os resultados eleitorais vão subir. Isto é a tendência que se está a verificar na Europa do norte. A ideia de União Europeia enquanto terra das liberdades, da tolerância, do respeito pelo outro, está a desmoronar-se. A Europa portou-se muito mal no início da guerra da Ucrânia ao proibir congressos sobre Dostoiévski. Isso foi uma ação que o Putin tomaria. Foi um erro colossal. E tem-se falado muito pouco disso. Porque proibir uma conferência sobre Dostoiévski é próprio de uma ditadura. Retirar do programa uma sinfonia do Tchaikovski… Francamente, o homem viveu no século XIX. Isto não faz sentido e é uma espécie de traição aos próprios princípios que a União Europeia proclama.

A sua tese de doutoramento foi sobre a música e o poder. Quem precisa mais do outro?
A música precisa mais do poder. Ontem estive a ler um livro com entrevistas a alguns compositores. O Enno Poppe, um alemão que este ano foi compositor residente na Casa da Música, no Porto, diz a certa altura: vejo com imensa dificuldade a sobrevivência das orquestras porque só dão dois dias para ensaiar e é muito pouco. Isto é uma reflexão de alguém que vem de um país onde cada cidade minúscula tem uma orquestra sinfónica e um teatro de ópera. Esta situação não é da Alemanha, é do mundo todo. A diminuição do tempo de ensaio das orquestras é um problema real. A partir dos anos 1980, com o triunfo do neoliberalismo, o investimento na cultura começou a ser amplamente contestado. Este senhor holandês que ganhou as eleições, o Geert Wilders, quando começou na política disse a certa altura que o Estado não tem nada que financiar esta música e estas instituições culturais, que na Holanda são mais do que muitas.

Ao longo dos séculos, os compositores dependeram financeiramente dos poderosos. E hoje? Dependem de quem?
Das grandes instituições culturais como a Casa da Música, o CCB, a Culturgest, a Fundação Gulbenkian…

Em Portugal, é possível viver da composição ou é necessário ter atividades paralelas?
São muito poucos os compositores no mundo que vivem só da composição. São sempre, também, professores de composição nas escolas superiores de música.