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Ao longo da carreira, António Pinho Vargas conciliou a diversidade com a coerência. Nunca se deixou trair pelos lampejos da fama, tão pouco pelas amarras do consenso ou pelo voluntarismo desenfreado da experimentação artística. «Lançou cartas» quando se começou a falar de Jazz e Rock em Portugal, nos anos 1970 e 1980. Mais tarde, os seus discos estavam nas listas dos mais vendidos e tocados nas rádios. É pianista e assinou a música de filmes premiados. É um eminente professor de composição e ensaísta. Foram-lhe encomendadas óperas e composições instrumentais de grande fôlego, entre elas o Concerto para Violino (2015) e o Concerto para Viola (2016), as únicas que compôs para solista e orquestra.

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António Pinho Vargas habituou-nos ao longo das últimas décadas a sobrepor a mais cuidada produção artística com uma reflexão profunda acerca do enquadramento sociológico e político da criação musical. O seu livro «Música e Poder», publicado em 2011, é leitura obrigatória para quem quiser entender o panorama da criação musical erudita contemporânea. E as suas composições também o são. Com efeito, a Música, tal como a receção que dela se faz, nunca é neutra na sua relação com o mundo. Tem sempre presente uma dimensão subjetiva. Influi imprevisivelmente no contexto em que acontece, por intermédio de cada um de nós. Assim se dão a ouvir os seus dois concertos.

O Concerto para Violino é dedicado à memória de Gareguin Aroutiounian (1951-2014), violinista arménio que se radicou em Portugal no final da década de 1980 e seu colega durante largos anos na Escola Superior de Música de Lisboa, «onde a sua presença como professor excepcional e homem notável deixou marcas em todos nós». A estas palavras, o compositor acrescentou outras que revelam como a dupla circunstância de lembrar um colega oriundo da Arménia e de ter trabalhado proximamente com a violinista Tamila Kharambura, nascida na Ucrânia mas criada em Portugal, o colocaram «em contacto direto, pessoal, humano, afetivo, com a cultura e a música dos países do Leste Europeu, ou seja, com uma diferença cosmopolita e com a importância notória que a presença de muitos músicos provenientes de vários países que escolheram este como lugar de vida e trabalho teve na melhoria das orquestras e do ensino da música.» Por essa razão, usou como material base desta partitura duas das escalas simétricas que se encontram na famosa coletânea Enciclopédia de Escalas e Padrões Melódicos publicada em 1947 pelo compositor americano de origem russa Nicholas Slonimsky, um livro que Pinho Vargas guarda consigo desde finais dos anos 1970.

Num registo profundo e elegíaco, a obra tem quatro andamentos, sendo os últimos dois tocados sem interrupção. Recuperaß-se aqui, uma vez mais, as palavras do compositor: «Sendo as vidas humanas marcadas de forma inexorável por um ciclo, o quarto andamento – Allegro; Transição e Lamento – resume, talvez, o sentido da dedicatória e da sua lição», a lição de vida do saudoso Gareguin Aroutiounian.

Já o Concerto para Viola e Orquestra foi composto no ano seguinte. Divide-se de igual modo em quatro andamentos e tem como subtítulo «O Livro de Job: Leituras». A referência é sugestiva. O livro de Job é um dos primeiros livros do Antigo Testamento da Bíblia. Conta a história de um homem rico e devoto a Deus que é sujeito pelo Diabo, o anjo rebelde, a uma série de provações e sofrimentos. Job perde tudo, incluindo os filhos e a saúde, mas recusa revoltar-se contra Deus. Em vez disso, questiona-O sobre o sofrimento a que foi sujeito. Numa linguagem poética e repleta de metáforas, este escrito explora temas como a natureza do sofrimento e a justiça divina.

Espera-se da música, portanto, drama e espiritualidade. Não se espere, todavia, a ilustração de uma narrativa. Os andamentos dispõem-se na alternância Lento-Rápido-Lento-Rápido e cada um deles corresponde a momentos esparsos do texto. São exercícios especulativos e metafóricos do autor: «uma situação estável, uma turbulência inesperada, uma meditação perplexa (III-Lamento) e um desenlace próximo da grande intensidade quer das dores quer do vislumbre de uma pacificação final.»

Rui Campos Leitão