Jardim do Passeio Alegre in Outros Lugares e As Mãos (28-08-2022)
Confesso que ando pouco menos do que obcecado pela música Jardim do Passeio Alegre. Está presente em dois discos: Outros Lugares (1983) e As Mãos (1998). Tudo nela me encanta nestes dias tão pouco frequentes. Tento descobrir porquê e vou escrevendo. Foi a última a ser composta pouco tempo antes dos 3 dias de gravação em Dezembro de 1982. Começa pelo título: Jardim do Passeio Alegre. O lugar existe onde existiu desde não sei quando. Mas a um lugar não lhe basta existir, é preciso ser ‘habitado’, no sentido pleno da palavra. O significado afetivo do lugar, do jardim, para mim, não é passível de traduzir senão em palavras vagas, lugar de amor e sonhos de um futuro ignoto, apenas vislumbrado, apenas imaginado, talvez possível; lugar lindo onde se vê o rio e o mar, lugar de refúgio nas angústias nas mais diversas horas do dia ou da noite durante anos, lugar onde regresso ainda para agora passear a minha idade; talvez ainda, título que motivou a frase de um produtor da Polygram ali em Benfica, pouco antes de ser editado em 1983, dita a olhar não para mim, mas para um outro produtor: “Não sei se quero editar um disco que começa com uma música que se chama Jardim do Passeio Alegre!” Talvez tenha sorrido… não me lembro bem… Era o que era.
Talvez o facto de Outros Lugares ter estado fora do mercado bastantes anos o possa explicar em parte. Isso significava não existir, naqueles tempos pré-Spotify. Mas não será tudo. Por vezes nós, passamos longo tempo, anos a fio, sem ouvir uma música qualquer… ou porque não queremos ou não podemos ou por outra razão qualquer mais obscura. Oiço-me a mim e oiço os músicos, a sua extrema concisão e admirável expressão, como muitas vezes aconteceu naqueles 10 anos do quarteto. Dura apenas 3’26”. Mas talvez aquilo que motiva a pequena obsessão actual seja o sintetizador. Toco piano no take, é claro, mas depois gravei o sintetizador. Por cima. Na realidade por baixo. Só na parte final do take ele adquire uma curta autonomia, logo depois da bela frase conclusiva do José Nogueira no soprano. No entanto é nele que reside uma espécie de conforto sonoro que habita toda a música. Para quem se imaginava então como um grupo de jazz, usar um sintetizador era ainda uma pequenÍssima heresia, apesar de Joe Zawinul, dos Weather Report (o mais americano de todos os austríacos) que então adorávamos.
Dois anos mais tarde, com o início da Dança dos Pássaros, a heresia tornou-se irremediável. Aconteceu (quase) por acaso. O Roland Juno 6 continuava lá na sala de ensaios que partilhávamos com o Jafumega, onde de resto o Mário, o Pedro e o Zé tocavam. Eu próprio tinha tocado com eles, talvez uns 6 meses, mas depois saí. A vida estava dura. Mas há saídas que se transformam em entradas, vamos descobrindo mais tarde, como aliás é frequente. Andávamos a ensaiar A Dança dos Pássaros há 4 ou 5 meses. Nunca a tínhamos tocado em público. Só o fizemos depois dos 3 dias de gravações de Cores e Aromas e da sua edição em 1985. Então uma noite, antes de começar o ensaio, ainda estávamos de pé, vi-me a tocar aquela sequência de acordes no Juno 6, muito lento, como tinha que ser, e aquele som prodigioso encheu a sala e encheu-nos as ideias. A certa altura o José Nogueira começou a tocar a melodia sem perguntar nada. Os olhares falavam. O resultado era tão maravilhoso que repetimos vezes sem conta, tendo já percebido secretamente que era assim que a Dança dos Pássaros ia começar. Sem aquele acaso, aquela convivência, aquela partilha, sem aquela abertura de espírito do querer experimentar, que afinal tínhamos, a Dança dos Pássaros não seria como veio a ser.
Para isso foi preciso aquele instrumento ali-à-mão.
E aqueles músicos ali de pé.
O mesmo exato instrumento que está aqui, discreto, no Jardim do Passeio Alegre.
António Pinho Vargas
(28-08-2022)