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Estudo/Figura 1990 (nota)
Estudo/ Figura 1990
A existência de notas explicativas nos concertos de música contemporânea é uma verdadeira instituição. A multiplicação de análises das próprias obras é igualmente prática corrente. Pergunto-me se essa extraordinária proliferação de textos teóricos não servirá para cobrir uma indisfarçável incapacidade, admitida implicitamente pelos compositores, de a música conseguir por si só fazer funcionar o prazer auditivo, ou o prazer intelectual, ou um prazer autitivo\intelectual, ou seja, a emoção estética, sob qualquer forma de que ela possa revestir-se …
Evidentemente que o compositor deve estar consciente dos processos que utiliza e que a análise da música do presente e do passado é indispensável na sala de aula, mas a descrição de determinado processo de composição não deveria servir, só por si, de caução histórica ou ideológica duma obra. Será que alguma vez a razão profunda de uma obra foi explicitada pelas palavras do próprio compositor? Ou será que, como disse Boulez, num texto notável, se a análise inicialmente nos tira das trevas e, por um momento, julgamos conhecer uma obra, quanto mais avançamos na análise, mais evidente se torna a impossibilidade de explicar esta ou aquela decisão entre as muitas a que cada obra obriga, e por isso, rapidamente regressamos ao desconhecido impenetrável que ela encerra?
No caso desta peça, por exemplo, será útil para o auditor eu dizer que a obra se divide em 7 variações, cada uma com dois gestos? Ou que a génese está ligada a duas pequenas figuras com notas e ritmo próprios? Que o título Estudo tem a ver com a ideia íntima de pôr à prova a minha capacidade de variar, de variar sempre a partir do mesmo? De tentar modificar completamente os gestos do compositor, aqui muito ligados à escrita, a uma certa maneira de escrever, mas também ao gesto do instrumentista, e ao seu previsível prazer de tocar o instrumento duma maneira relativamente tradicional, sem contrariar o seu destino, sem esventrar o seu interior?
Será que tudo isso não revela uma irremediável nostalgia da tonalidade ou dos modos que persistem gloriosamente noutras culturas do mundo onde a música ocupa um lugar na vida e no quotidiano sem para isso precisar das explicações teóricas, apologéticas e fortemente ideológicas que o estruturalismo europeu dos anos 50 e 60 veio tornar opacas, indecifráveis, quase absurdas e, por isso, as mais das vezes, vazias de sentido?
António Pinho Vargas 1990