Notas sobre Outro Fim
A música existe no tempo e consequentemente é uma arte da memória. Desse modo qualquer peça musical propõe à audição um sistema de relações, de retorno de signos, de identificação de elementos. Prescindir desse jogo de e com a memória será uma forma de dificultar a tarefa reconstrutiva que constituiu a percepção musical e de criar obstáculos à possibilidade de uma narrativa – propriamente musical – que seja inteligível. Escrevo “propõe à audição” para evitar a falácia poiética que consiste em considerar que o sistema de relações internas, desde que exista na partitura, desde que se possa aí encontrar e analisar, constitui em si a legitimação da obra enquanto estrutura interna e obra de arte. Pode-se compreender que os compositores tentem defender o seu trabalho como podem. No entanto penso, hoje com muitos outros, que não é assim. O sistema de relações que uma obra propõe só poderá funcionar na medida em que se traduzir numa percepção delas. Numa audição, a percepção é uma percepção sensível, numa análise existe um esforço da razão. Além disso, numa única audição, não há muito tempo para isso. Existe apenas o tempo que dura a peça. Na actual condição site-specific que caracteriza a produção das novas óperas portuguesas e, sem dúvida, de quase todas no mundo ocidental, isso é ainda mais patente. Há por isso que tirar partido da circunstância e do seu carácter irrepetível porque não há futuro. No caso desta ópera e de acordo com os meus procedimentos habituais na última década é com gestos musicais que tento construir sinais capazes de existirem tanto no plano da escrita como no plano da percepção. Defino gesto musical como uma entidade – que começa sempre por ser um objecto musical determinado – que, independentemente de ser constituído por uma nota, uma frase ou por um grupo de notas, cada um deles dotado de um determinado perfil (rítmico, de tempo, de densidade, de intensidade ou movimento), propicia tanto a identificação perceptiva como vastas possibilidades de transformação ou desenvolvimento.
Uma transformação daquilo que não é identificável, nem como gesto, nem como figura, resulta noutra coisa igualmente não-identificável. Quer o elemento inicial quer a sua transformação se neutralizam mutuamente. Sobre estes aspectos – os elementos que permitem a identificação – Adorno escreveu no Ensaio sobre Wagner que ”ele teria escrito para pessoas que não percebem nada de música” acrescentando, a propósito das sucessivas publicações das listas dos leitmotiv das óperas de Wagner “a necessidade de comentários não era desde sempre senão a declaração do falhanço da estética wagneriana da identidade imediata”. Não posso estar mais em desacordo. No entanto a leitura daquele ensaio foi estimulante a contrario. Wagner compreendeu a necessidade de sinais, de signos de identificação para jogar com a memória do ouvinte e, ao contrário da opinião de Adorno, é justamente para quem “percebe” de música que eles existem. Ouvir música é perceber, ou seja, percepcionar, os tais sistemas de relações. A música atinge, antes de mais nada, a esfera do sensível.
Sendo uma ópera, a música existe em função das personagens, existe com as personagens, do seu percurso na acção dramática e, neste caso em particular, com os espaços cénicos. Existe com o que dizem / cantam, com o que fazem / representam, com a sua desorientação e o que nos mostram das várias manifestações da “angústia do homem no tempo”.
Em Julho de 2008, a meio caminho da composição da obra escrevi para o programa trimestral da Culturgest: “A primeira leitura do libreto Outro Fim de José Maria Vieira Mendes mostrou-me antes de mais nada três coisas: que as palavras tinham uma plasticidade muito adequada a uma ópera, que a acção dramática se desenrolava com o ritmo de uma peça de teatro e, finalmente, que as personagens eram
ricas, tinham espessura e complexidade psicológica. Que mais se pode pedir a um libreto? Pairam por cima deste texto – e desta ópera – os dramas familiares, as histórias de vida dos que, face a um quotidiano pouco exaltante, acabam por chegar às tragédias. O meu trabalho de composição segue o meu procedimento habitual, ou seja, começa pelo texto, pela interpretação das situações e pela consideração do seu potencial. Os materiais musicais que vão sendo
criados deste modo são sujeitos a transformações e derivações de si próprios, conforme o desenrolar da acção e a contingência do acto criativo. A divisão do palco em três lugares de acção visíveis em simultâneo, sendo um deles um café, motivou a escolha de divisões entre a localização principal dos músicos no fosso e de pequenos grupos instrumentais on stage em certos momentos.”
Não há razão para alterar seja o que for neste texto, mas poderei talvez acrescentar alguns pormenores. No desenrolar do meu trabalho na ópera verificou-se uma espécie de autocriação na qual os próprios gestos evoluíram entre a identidade, a repetição – fundamental no próprio libreto – e a diferença, aparições de alguns dos seus restos modificados em diferentes graus de acordo com a narrativa dramática. As músicas do café são talvez plausíveis, enquanto tal, no início de cada uma dessas cenas mas, de acordo com a minha compreensão do texto e do que penso ser o teatro musical e o seu movimento permanente entre um real e um interior das personagens, acabam por dar lugar a uma total inverosimilhança com o diverso desenrolar das cenas. As músicas passam do café para os lugares do pensamento ou do sentimento onde o compositor os coloca. Outro exemplo, talvez o mais legível, a música da mãe, com os seus delírios e premonições, começa de uma forma clara, estabelece-
‑se como pilar e no decorrer da ópera vai sofrendo pequenas mas sucessivas alterações de vária ordem. Finalmente, surge na cena final Verão/Epílogo como desfiguração parcial e vaga dissolução à medida que se ilumina a hipótese de retorno e, desse modo, a hipótese da ilusão ou do fingimento literário.
O holandês Louis Andriessen disse numa entrevista em 2005: “I try to compose good pieces”. Poderíamos pensar que este é o simples desígnio que todos os compositores estabelecem à partida.
É claro que cada um compõe com as suas convicções, com os seus critérios teórico-estéticos, mas também com a sua imaginação e a sua capacidade criativa. No entanto, temos por vezes a tentação de compor peças-manifesto, peças que, talvez mais do que aspirarem a serem simplesmente boas, tentam conter em si esse carácter ou, pelo menos, são acompanhadas por literatura do autor a sublinhar tal pretensão. Esse carácter-manifesto pode revelar‑se em proclamações mais ou menos estridentes de adesão a uma estética; pode revelar-se na convicção do autor de que irá, com a sua peça, mudar o mundo ou atingir um qualquer patamar metafísico, um qualquer absoluto. Caí algumas vezes nessa tentação inútil. Há uma década atrás, acerca das minhas duas primeiras óperas, apresentei argumentos para defender as minhas posições no quadro da hegemonia pós-serial e da discussão pós-moderna. Talvez isso tenha sido necessário então. Mas hoje essas questões já perderam uma grande parte do seu sentido (excepto, talvez, para umas poucas dezenas de franceses e seus discípulos). Durante a composição desta ópera, que decorreu com entusiasmo, tudo me pareceu evidente, todas as ligações entre as cenas, todas as mudanças, radicais ou não, de atmosfera musical pareceram, aos meus ouvidos, dotadas de uma espécie de necessidade, de uma lógica musical e dramática tal que nem dei por elas. Talvez seja o momento de aceitarmos a posição artesanal de Andriessen e de compreender a modéstia do alcance a que uma obra musical pode aspirar, pace Schopenhauer (que, aliás, viveu num mundo que já não é, de modo nenhum, o nosso). Nesse sentido espero ter composto uma boa peça – e, no meu delírio, julgo tê-lo feito – embora, na verdade, nem sequer saiba bem o que isso seja. Apesar dos inúmeros tratados filosóficos sobre o belo, o sublime – a estética em suma – o que uma obra de arte é não deixa de pertencer ao domínio dos mistérios insondáveis com os quais nos relacionamos por aproximações indecisas. Essas analíticas, concentrando-se quase sempre nas obras e menos no fazer não consideram suficientemente o impulso artesanal característico do trabalho humano. Por isso, mas também porque uma ópera é o resultado do trabalho de um conjunto de artistas, digo, parafraseando o maravilhoso Morton Feldman:
“We work. Others call it art”.

António Pinho Vargas
Novembro 2008

1. Referência ao título de um artigo de Richard Taruskin de 2003 em The Musical Times.
2. Escrevi em 2007 “Para mim, compor uma ópera hoje é o equivalente a construir uma instalação site-specific. Destina-se a ser montada e apresentada num determinado local, terá as características que resultam do trabalho dessa montagem, terá a aura acústica possível nas condições que a sala propicia. Após a desmontagem desse evento será um objecto sem utilidade: consistirá num conjunto de papéis amontoados num caixote.” in Ópera e a condição site-specific, 2007,
ver www.antoniopinhovargas.com/ideias
3. Esta frase, dita por António Lobo Antunes num documentário sobre o seu último romance O Arquipélago da Insónia, é a melhor condensação que conheço, numa só frase, da ontologia heideggeriana.