Os Dias Levantados (ópera)

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TEXTO PARA O CD EMI (2004) – NAXOS (reprinted in this new edition with English translation)
GUIA PARA OS DIAS

Prólogo
“ao fim de vários anos de dúvidas e perplexidades, julgo ter percebido que a esséncia da minha música reside na sua impureza (…) A pureza estilística é-me completamente estranha”
“O 25 de Abril foi ilegal, indisciplinado, incoerente, injusto, insuficiente, por vezes ridículo, mas maravilhoso e inesquecível.

Estes excertos do texto que escrevi para o programa do Teatro de São Carlos aquando da estreia da ópera Os Dias Levantados em 1998 enunciam uma declaração pessoal de memória, afecto e princípios importantes: a defesa da impureza e da liberdade no processo criativo. Esta declaração de princípios tenta definir a minha posição face aos campos de possibilidades sempre presentes no início da composição – uma teoria-antes – e uma atitude ontológica face ao acto de criar: aquilo que ainda não é, mas que virá a ser alguma coisa, a assumpção do trabalho artístico enquanto processo, sujeito a forças, irupções, acidentes.
Este texto poderá ser um guia para a ópera. Não pretende explicar o libreto nem a música, mas tão simplesmente mostrar de que modo eu compus a música a partir do texto, com o texto, apesar do texto ou contra ele, com um esforço de compreensão da dramaticidade das suas implicações e a presença das nossas memórias dos acontecimentos vividos. Respeitei quase integralmente a estrutura formal do libreto de Manuel Gusmão (os números de index do CD correspondem à estrutura formal da peça), mas o texto, se me organiza a forma, por si só não compôe a música. Determina-a de várias maneiras, contextualiza-a, dá-lhe o seu sentido pleno. Mas era desejável que a música igualmente lhe prolongasse o significado, lhe devolvesse os sentidos poéticos ou emocionais que lhe estavam contidos, na minha perspectiva musical. Neste caso usei materiais arbitrários decorrentes de letras e números, como tentarei explicar adiante, mas quero afirmar que considero as palavras do libreto parte integrante da música da ópera. Quando “não há música“, quando os cantores “só” falam, essa foi a música que eu compus. As palavras estão lá escritas por mim enquanto música.

Guia para Os Dias
Como afirmei nas notas de programa da estreia em 1998, encontrei-me a usar decorrências possíveis das letras e dos números relacionados com a temática histórica em questão. Antes da 1a cena do I Acto há uma página instrumental a que chamei “a página simbólica”. Trata-se de um baixo de passacaglia que terá um papel particular em pontos chave da ópera: na cena 4 do II Acto, “o tempo é a mudança” e no tutti final da cena 3 do IV Acto. Nos dois casos os vários coros e os solistas “dizem” perspectivas diferentes, opostas ou antagónicas, sobre os acontecimentos. Opoêm perplexidades, dúvidas e medos à alegria e ao entusiasmo face às mudanças. Em “o tempo é a mudança” do II Acto, a figura de base do baixo vai-se contraindo progressivamente, usa diferentes velocidades simultâneas no tutti instrumental, o que, associado às mudanças métricas, provoca um crescendo de tensão. No IV acto, embora as diferentes vozes digam igualmente textos diversos, com conteúdos políticos, emocionais ou expressivos diferentes, o baixo da passacaglia mantém-se inalterável. Esse baixo regula e enquadra as diversas linhas musicais, do mesmo modo que a democracia formal, entretanto instaurada, enquadra e regula a possibilidade de se exprimirem os vários discursos da vida.
A página simbólica foi composta usando o antiquíssimo processo de extrair equivalências entre letras e números e notas musicais, durações ou valores ritmicos. O ponto de partida era naturalmente 25 de Abril de 1974; de Abril retirei as letras A como Lá, B como Si e R como Ré; a partir dos números, sobretudo 25 e 74, retirei hipóteses de intervalos, igualmente no sistema tradicional – segunda, quinta, etc – e na classificação mais recente dos intervalos por número de meios-tons, 1, 3, 4, 7 enquanto números de meios tons – e retirei também a possibilidade de lhes atribuir durações, valores rítmicos, número de ataques, ritmos de acentos, etc. Como três notas é pouco decidi usar igualmente as alterações (sustenidos e bemois) associadas às três notas em questão o que aumentou o número de notas para oito, dando particular importância a Si Bemol (em alemão B). Hierarquizei as várias opções em famílias de acordo com vários níveis de interesse ou de prioridade. Quando escrevi a página simbólica sempre soube que estas escolhas eram – e sempre foram – completamente arbitrárias. Muitos compositores as usaram no passado mas elas não passam de pretextos para começar a compôr e estabelecer relações.

Uma rede de possibilidades deste tipo tem as vantagens de um ponto de partida relativamente estruturado, mas mantém em estado potencial muitas outras possibilidades derivadas. Funciona, não como um conjunto restricto de caminhos ou de regras que assegurem, pela lógica dedutiva, uma consistência, mas sim como um lugar determinado de onde se parte com todos os horizontes “tumultosos” em aberto. A rede está num plano profundo de abstração, em si mesma não tem estatuto perceptivo óbvio, nem significação semântica. Esta será concretizada no desenrolar da obra na medida em que, enquanto sistema de relações, a aparição, a repetição, o desaparecimento e a reaparição de certos elementos é que vai atribuir significados, despertar percepções, associadas ou independentes do texto.

As relações que interligam ou separam o Prólogo, os 4 Actos e as diferentes cenas são de vária ordem. Assim, o Prólogo como “Conversa de espectros sobre o vivo” é claramente “antes da acção” e foi composto numa fase já adiantada da composição. Era necessário que “o vivo” que se segue estivesse já definido para que me fosse possível compôr uma espectralidade. A importância do Prólogo é fulcral na medida em que esclarece quem fala quando, na ópera, falam o Anjo da História e o Anjo Camponês e qual é a filosofia da história que subjaz ao libreto. Sendo uma ópera sem “personagens completas, nem tipos, o que há são vozes, segmentos de falas, citações, partes de formas de vida”,1 não é por acaso que talvez a “única” ária de ópera desta ópera seja a de Walter Benjamin no Prólogo, o filósofo judeu alemão que se suicidou em 1940, em Port Bou, perto da fronteira francesa com a Espanha, quando em fuga da barbárie nazi tentava ir para a América via Portugal. Aquilo que de mais importante se reflete nesta ópera está na tese IX do seu artigo “Sobre o Conceito de História”: a ideia da revolução com um tempo desregulado onde o tigre salta a céu aberto e a figura do Anjo da História: “imortal – dura enquanto durar a história dos humanos – mas não pode deter-se para “acordar os mortos e reunir os vencidos”. O Anjo Camponês – criação do escritor Carlos de Oliveira – “é mortal, dá a ver contando o que vê”. Os dois Anjos são “figuras de testemunho”.
O I Acto começa com dois traços marcantes dos últimos anos do antigo regime: a continuação da ausência de liberdade(s), a perseguição, prisão e tortura dos opositores, organizados em partidos e redes clandestinas; e a guerra colonial que foi factor decisivo da progressiva tomada de consciência dos militares da necessidade de uma solução política para a guerra mas também para o país. A música das cenas dos pides e da guerra colonial (e alguns à partes sobre a luta antifascista), apresenta a obsessiva continuação do mesmo: a situação opressiva, retrógrada, imobilista e sem saída do regime anterior ao 25 de Abril. Os diversos ostinati destas músicas são formados por acordes derivados da página simbólica.
O II Acto “Os Dias Levantados”: The time is out of joint”, realiza a profecia de Walter Benjamin no Prólogo “quando o presente de vários futuros carregado estoira!” e tem os maiores contrastes da ópera. A frase hamletiana é concretizada pelos desconcertos históricos de linguagens musicais, em extrema articulação com as mudanças estilísticas – as intertextualidades – do próprio texto literário. A cena 1 do II acto, o confronto da manhã do dia 25, quando as tropas de Salgueiro Maia chegaram ao Terreiro do Paço e uma força da GNR se desmembrou na hierarquia de comando, alterna e sobrepõe episódios do confronto militar potencial com a figuração literária da alegria popular, o texto de Fernão Lopes (séc. XV) “as gentes questo ouviam saiam aa rua” e o coro final “a gente começou de se juntar” que usa as notas simbólicas principais la- si- do# (= ré bemol).
Um momento fulgurante do libreto de Manuel Gusmão é a intersecção das “vozes num balção do futuro” entre o poema de Sophia “esta é a madrugada que eu esperava” e o seu próprio poema “este é o som e a fúria do sentido”. Este momento irrompe no início da cena 2 do II Acto em plena celebração – de que o poema de Sophia, escrito no próprio dia 25, faz parte – como olhar cínico ou arrependido dos que posteriormente mudaram de posições. Nesta passagem, respondi com o momento de maior tensão estilística da ópera. Entre duas versões de um coral com elevado grau de consonância mas alguma ambiguidade tonal, escrevi uma fantasia para 4 vozes masculinas, piano, 2 trompetes e 2 trombones, onde um cinismo musical avantgarde cruza e inverte as relações triviais de progresso e retrocesso correntes.
Relações tripartidas repetem-se de outras formas: o coro “o tempo saiu enfim dos eixos” tem um introdução com notas repetidas nos registos extremos, com variações tímbricas e várias velocidades. O coro, com divisi de naipes e grande variedade de tipos de canto, diz o texto em várias velocidades e “modos de dizer“. Na tripartição agora atonal-tonal-modal cromático (a passacaglia), segue-se a cena 3, “Elas acendem o lume”, alternância/simultaneidade de fragmentos de um texto de Maria Velho da Costa escrito em 1975 com texto re-escrito por Manuel Gusmão a partir de um documentário fílmico de Fernando Matos Silva, de 1974, com 5 ou 6 mulheres beirãs. Vimos aquelas mulheres a falar da sua vida, das suas esperanças após o 25 de Abril; de certo modo, conhecia-as. Escrevi, a partir das ligações possíveis entre os dois textos, o do coro madrigal de 8 vozes e o das 3 Irmãs, o que veio a ser a secção mais tonal da ópera, uma canção popular do meu folclore imaginário. A cena 4 “the time is out joint” II, que sub-intitulei “o tempo é a mudança”, utiliza a passacaglia com gradual accellerando de figuras e de métrica. No climax/final desta cena, irrompe o grito da 3a irmã “eu quero o sol e a lua…”. Este II Acto, no seu todo, configura na prática musical a da coexistência de vários tempos num determinado tempo histórico (Benjamin). Poderia dar outros exemplos auto-analíticos da partitura mas devo cingir-me ao essencial.
É na cena 3 do III acto que se verifica, do ponto de vista musical, a peripateia da tragédia grega. É no momento em que as vozes mais reactivas em relação à direção dos acontecimentos, expressas de várias maneiras ao longo do III Acto, são atingidas no cerne do seu poder, o económico, que elas encontram a sua música. O momento em que o walking bass dos argumentos operários dá lugar, por aumentação dos valores rímicos, a um ritmo binário tipo-marcha, é o ponto de viragem fulcral da ópera e esta música, tal como o baixo passacaglia, aparece mais duas vezes: primeiro, no final do recitativo – framentação do material da introdução do III acto– “A desavença”, cena 1 do IV acto, quando fica clara a divisão irreversível dos militares e o “centro” –nós queremos salvar a revolução–e a “direita” estabelecem a aliança que vai levar ao 25 de Novembro e, segundo, no final deste Combattimento, como aparição fantasmática, marcha desfigurada por flatterzung, quando a tentação da direita “Agora é limpar este lixo, esta doença que se pegou” é travada pela facção democrática “Não! Chega!”. Cada um dos 4 soldados n’A Desavença representa uma posição política diversa: o chamado “grupo dos nove” (a divisão cresce, assim a democracia perde-se…), os gonçalvistas (merecíamos este espanto…), a “extrema-esquerda” (vocês são todos burguesia…) e a “direita” militar (vocês saldaram Africa, vocês espalham o terrror…).

Fixemo-nos em dois aspectos: na evolução do tipo vocal usado pelos vários representante da “direita” e na evolução da música da peripeteia a que chamo marcha. Na cena 1 do II acto, o latifundiário exprime-se sempre em sprechgesang. O seu discurso é claro mas informal no sentido de não ter encontrado ainda a sua forma. Na cena 2 o proprietário usa já o canto tradicional mas não tem um discurso autónomo, não tem leitmusik, canta no mesmo plano dos outros intervenientes. Na cena 4, a partir da frase “o que há é cada um com a sua tarefa”, por um lado, o patrão define e explicita a sua visão do mundo, e por outro, fixa uma nota principal, dó, e encontra a música adequada à sua ideia fixa: retomar o poder ameaçado. Nesta cena a música alterna quando intervêem os trabalhadores na acesa disputa política que se segue, mas na cena 1 do IV acto, a partir da frase “o poder não pode estar na rua… mas a vocês apoio-vos a fazer o tempo entrar nos eixos” os outros intervenientes são obrigados a cantar as suas dúvidas e angústias precisamente sobre esta música que se torna predominante e se impôe nos momentos chave da narrativa até ao regresso da passacaglia final.
A cena 2 do IV Acto o Combattimento, que figura metaforicamente o 25 de Novembro – momento historicamente confuso à beira da guerra civil – utiliza uma descrição do Ajax de Sófocles, texto falado sobre um recitativo intercalado de verdadeira “música concreta instrumental”. A cena 3, “Acabou e não acabou” é o tutti final da ópera e o regresso da passacaglia. Os 4 coros finais sobrepôem, para além da perceptibilidade, as mais diversas reações ao pós-25 de Novembro: o alívio (agora acabou, o tempo volta ao normal…), a crença na possibilidade de continuar uma qualquer utopia (não, há mais coisas para escrever…), a defesa cínica da normalidade democrática (vocês elegem, nós representamos…), a tristeza pelo abandono das colónias ( lá a vida era mais quente…) ou a convicção de que valeu a pena ( ninguém pode fechar o céu aberto).

EXODO

O Exodo é uma pequena coda com a incrivelmente bela laudatio que Gusmão escreveu. O acorde fixo que emerge da cena anterior é formado pelas notas principais da rede e é articulado uma última vez como quintina de semi-colcheias.
Exodo
Trabalhar durante um ano e meio com Manuel Gusmão foi um prazer só suplantado pela alegria e o estímulo sem limites que um ano com o seu libreto à frente me provocou. Viver o que se seguiu à estreia da ópera foi riquíssimo, tanto como verificação política “daquilo que ainda hoje é matéria traumática, divisão das memórias” – como do conhecimento da problemática natureza humana. Estar horas sem conta a ouvir e a trabalhar sobre esta gravação milagrosa de José Fortes, esse prazer partilhado de ouvir esta música, aquelas palavras, aquela força dos cantores, aquele empenhamento do coro ali na Culturgest, tudo isso, ninguém apagará para mim. O resultado é este CD, objecto artístico de destino incerto, como incerto é agora tudo o que diz respeito ao mundo.
António Pinho Vargas, Agosto de 2003