Six Portraits of Pain, para violoncelo e pequena orquestra (2005)
Esta peça tem uma relação com seis textos que escolhi. Não é uma peça programática no sentido habitual do termo (como poderia ser?) mas os textos habitam a obra. Estão escritos na partitura e aos músicos é pedida a sua leitura durante a execução. Dessa forma, cinco dos seis textos escritos na partitura existem na obra enquanto presença consciente nos músicos, mas não existem enquanto canto ou fala para os ouvintes. A única excepção é um fragmento de um poema de Anna Akhmátova. Os fragmentos que seleccionei provêm de diversos tipos de testemunhos escritos mas nem todos “literários” no sentido estrito — cartas a amigos, discursos, frases de livros, poemas — e expõem diversos tipos de sofrimento existencial: perigos do pensamento livre, da dissidência, a perplexidade face ao estado do mundo, traumas decorrentes do inenarrável vivido e (sempre) a presença da morte. Como diz uma parte do texto de Thomas Bernhard: “Esta dor constituiu-nos. Esta dor é agora o nosso estado de espírito.” A dor tanto é a dor poética como a dor descrita, vista, sentida ou imaginada…
A minha música é inquieta: interessam-me os gestos, a captação de forças, de intensidades. Morton Feldman dizia que para ele tudo era “objet trouvé”, mesmo aquilo que ele pensava ter inventado. Os objectos que eu encontro são diferentes, mas às vezes caio igualmente na ilusão de os ter inventado. Há vários anos que falo de “objectos” musicais. E neste caso encontrei também uns poemas. Seria estranho que trabalhar tanto tempo com estes textos ao lado ou na memória não tivesse tido consequências, presenças, na música e no discurso. Tenho algumas convicções sobre este aspecto, poderia partilhá-las, mas nada me garante que não haja outras que me escapam. Escapam-me a mim, mas não escapam à peça.
Os Six Portraits of Pain são:
1. Espinosa/Deleuze
2. Thomas Bernhard
3. Manuel Gusmão I
4. Akhmátova
5. Cadenza sopra Spinoza
6. Manuel Gusmão II — Paul Celan (coda)
Os textos são sublimes. O primeiro que escolhi, de Gilles Deleuze — “Conta-se que Espinosa conservava o casaco rasgado pela faca assassina para se lembrar que o pensamento nem sempre era amado pelos homens” —, é, de certo modo, o mais importante porque (me) lançou a obra para a questão fundamental da liberdade do pensamento, da arte, da política e das diversas repressões que marcam as suas histórias. Hesito ainda sobre a inclusão de todos os fragmentos literários nestas notas. A possibilidade da sua leitura poderia orientar a percepção da obra para a procura de uma “significação literal” que não existe, que não pretendi nem quero provocar inadvertidamente.
Principalmente porque a relação entre os textos e a música não é linear. Num dado momento tomei consciência de que a estrutura formal da peça apresentava relações internas mais complexas do que a sucessão de seis retratos/andamentos, como se durante o trabalho composicional cada texto/retrato/música tivesse ultrapassado a sua localização particular numa página e afectasse o todo de forma irremediável. Estabeleci uma rede de relações entre estes elementos e é dela que deriva a narrativa da peça.
Tenho uma posição peculiar em relação a concertos; o habitual carácter atlético-virtuosístico do papel do solista não me atrai. Frequentemente cede-se à tentação exibicionista. Tento sempre outro tipo de solução. Nesta peça há um solista, o violoncelo, dois solistas secundários, dois violinos, e ainda três percussionistas como dramatis personae musicais. Esta divisão (1+2+3=6) tem igualmente uma relação com os 6 retratos e uma tipologia privada das dores.
Esta peça dura entre 26 e 28 minutos.
ANTÓNIO PINHO VARGAS, 2005
Annsi Kartunnen, Remix Ensemble, dir. Frank Ollu CD Numérica / Casa da Música
Marco Pereira, Orquestra Sinfónica da ESML dir Vasco Azevedo.
https://www.youtube.com/watch?v=1E5E9HxFgaU&t=45s
OBRAS
https://antoniopinhovargas.com/obras/six-portraits-of-pain-2005/