Sobre Magnificat para Coro e Orquestra (2013)

Sobre Magnificat (2013)

Escrever sobre uma peça musical que ninguém ouviu – com excepção dos cantores do Coro Gulbenkian e do maestro Paulo Lourenço que dirige os seus ensaios – e que não muitos irão ouvir, é um exercício um pouco louco que, por um lado, traduz a consciência da nossa condição actual e, por outro, revela a vontade do seu autor de permanecer com a obra, de pensar sobre ela mesmo já estando feita, de compreender as suas forças e a sua forma. Neste caso digo que sempre senti que a peça tinha um eixo de simetria no nº 6 Fecit Potentiam. Até lá havia um determinado percurso e a partir dali um outro. Mas porquê? Ao contrário da ideia tão corrente neste meio – que o compositor que reclama a liberdade do acto criativo composicional e que não usa esquemas prévios “não pensa” – o compositor, lamento, “pensa”. Pensa à medida que faz o seu trabalho e ainda tem de “pensar mais” justamente porque não tem nenhum esquema prévio. Deste modo interpreta as forças em jogo. Uma delas é o texto. Do nº 1 Magnificat – “A minha alma glorifica o senhor “- até ao nº 5 os textos do Magnificat são várias formas de agradecimento e exaltação de Maria que agradece a Deus a sua gravidez. No entanto, a partir do nº 6 Fecit potentiam, há uma mudança de carácter, de direção no texto do Evangelho de S. Lucas. De certo modo o texto passa a fazer a descrição e o elogio da acção divina no mundo. Se não vejamos. O Fecit potentiam, traduz-se: “Derrubou dos seus tronos os poderosos e exaltou os humildes.”; o nº 7, Esurientes, “Aos famintos encheu de bens e aos ricos despediu de mãos vazias.”; o nº 8, Suscepit Israel, “Socorreu Israel, seu servo, lembrado de sua misericórdia, como tinha prometido a nossos pais, a Abraão e à sua posteridade para sempre.” e finalmente nº 9 o Gloria do qual retive apenas essa palavra.
Este Magnificat tem uma moldura que decidi incluir, para além dos seus números habituais, um Introitus e um Exodus que introduzem e põem fim à peça com uma música similar, transposta uma 3ª menor acima, na qual uma música diversa de todos os andamentos envolve do ponto de vista formal toda a peça e apresenta talvez aquilo que Augusto Seabra descreveu há uns 12 anos como característico da minha música: “uma espécie de angústia de temor latente”. Essa moldura formal acentua a simetria, já patente em vários aspectos presentes – dois momentos de contraponto no nº 1 Magnificat e o nº 8 Esurientes, dois momentos de diferente dimensão entre 4º Quia fecit e 7º Deposuit, e simetrias de carácter e peso igualmente entre 1 e 8.
Há portanto dois percursos: aquele que assinala da exaltação de Maria, de 1 a 5 e a descrição da acção divina como projecto e acção de 6 a 9/10. Diria portanto que há um percurso paralelo ao texto que encontra a sua peripateia, a inversão da acção das tragédias gregas, no nº 7 Fecit Potentiam, no qual descrições da acção divina de certo modo próximas do carácter de muitas passagens do Antigo Testamento, tomam o lugar, em S. Lucas, do directo agradecimento de Maria a Deus. Por isso o meu Gloria, não é propriamente um Gloria. Tem consigo uma interrogação poderosa da música. O Coro canta Gloria, mas a música interroga o que é dito e cantado pelo Coro em piano e pianíssimo.

Esta obra foi encomendada pela Culturgest para o concerto comemorativo dos 20 anos da instituição.

António Pinho Vargas, Outubro 2013.