Jorge Lima Barreto, Jornal de Letras

Ao ler o autobiográfico Sobre Música, de António Pinho Vargas, sinto-me envolvido numa aura de afectividade. Páginas tantas, na sua introdução a uma entrevista que lhe fez para o Sete, a primeira ‘importante’ segundo o compositor, o Fernando Assis Pacheco, saudoso e comum amigo, diz que o António tropeçou em mim ou eu tropecei nele – na alvorada dos anos 1970, na revolução do Jazz.
O Toni, como lhe chamávamos, começou como o epigonal aluno no Conservatório. Passou de António Pinho da Silva, num enredo pop e pró jazz com tendências libertárias, ao insigne compositor da música contemporânea portuguesa, ao aureolado pianista de jazz, ao prolífico pedagogo, ao competente musicólogo, sob o definitivo heterónimo de António Pinho Vargas, 51 anos, compositor e intérprete, professor da Escola Superior de Música de Lisboa.
O metatexto Sobre a música é como uma hagiografia: partilhamos o milagre da sua vida privada e artística; conhecemos seus grandes amigos, colegas, alunos e professores, os encontros aureolados pelo bom humor sarcástico e revelações estéticas, éticas, antropológicas, psicanalíticas, culturais, sempre à volta da Música, da Arte e do Mundo; fluxos de energia criativa, polémica na fruição de audições magníficas; o olhar para a partitura onde o erotismo está na intermitência.
O livro é de grande erudição, múltiplo nas matérias, com a verve de um grande comunicador na área da teoria e da análise – já li inumeráveis textos sobre análise e nenhum se revelou tão clarividente. Além disso, revela um profundo conhecimento das nossas instituições ligadas à música, que critica com severidade, lucidez e exigência de transformações radicais imediatas.
O tomo de 360 páginas divide-se em articulários independentes. No capítulo ‘Ensaios’ propõe uma situação dilemática, logo inconclusiva, sobre a música canónica e a sua subversão histórica, confronta valores da música de massas e da ‘erudita’. E lança-se num tremendo e eloquente estudo da filosofia de T. W. Adorno, paradigma da controvérsia das controvérsias.
Em ‘Obras’ dá-nos detalhes luminosos, do solo à ópera, facetas diamantinas dos seus trabalhos, conta-nos os que e como o fez, numa simplicidade sofisticada. Na pequena resenha de ‘Artigos’ vale ler o posicionismo europeísta ao estabelecer relações entre o Jazz e a Música Contemporânea. Recupera a quase totalidade das suas ‘Entrevistas’ no devir da carreira de pianista e compositor, incluindo a que nos deu In nomine jazz em 1993, para o JL, e, a mais valiosa, com Augusto M. Seabra, de 1998. Observações extraordinárias sobre Schoenberg, Berg, Stravinsky, Boulez, Nunes, Ligeti, Reich, Andriessen, Coltrane, Jarrett, Garbarek, Parker, Hendrix – que escapam à parolaria habitual. Acesas problemáticas relativas à composição, à interpretação, à regência orquestral ou ao teatro musical. Dá a conhecer o dodecafonismo, o experimentalismo, o modalismo, o espectralismo, a nova música antiga e o serialismo, duma forma musicológica actualizada. E o núcleo historicista está na vivência (na vida) da música portuguesa, vista sob todos os seus ângulos e meandros, numa constatação dissonante da música-mercadoria e num incentivo à mais-valia não canónica. Formula um jumping out the sistem , com posturas político-sociais dialécticas frente à ideologia da cultura dominante. Ousa uma redefinição de pósmodernismo, com um fio condutor a atravessar o texto. Muito interessante e rico é o enredo da música e da ciência pela precisão epistemológica; o enlevo com a pintura, o cinema, a arquitectura, o teatro, sobretudo a poesia e a outra literatura, culminando num apologético hino ao indivíduo/artista, elogio do Narciso, apelo ao trabalho criativo, incitação à batalha pela liberdade da Música. O tom autobiográfico é transparente e directo, e evita os excessos subjectivos e ‘hipocondríacos’ ou as confissões inconfessáveis; apresentando-se como trabalhador incansável, num optimismo irradiante. Obra de grande fôlego, necessária, de leitura tão aliciante quanto educativa. Copiosa no comentário, na citação e na bibliografia, sente-se apenas a falta de um índice onomástico.

JORGE LIMA BARRETO, Jornal de Letras