António Pinho Vargas

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25 de março, 2025

Con(di)vergências: as relações entre o jazz e a música contemporânea. 1990

Artigo publicado na Colóquio/Artes nº 85 junho de 1990

à memória do Dr. Carlos Pontes Leça

Con(di)vergências por António Pinho Vargas: as relações entre o jazz e a música contemporânea.


Personellement, je n’ai jamais eu d’affection pour le jazz. - Olivier Messiaen 1



A Diferença


Escrever sobre as relações entre o jazz e a música contemporânea é antes de mais escrever sobre uma dificuldade.


Comecemos pela constatação mais evidente: o jazz e a música contemporânea constituem dois universos separados. Cada música tem a sua história, os seus heróis, os seus mitos, a sua ética,  a sua literatura, a sua crítica especializada, o seu público…


Parece-me obrigatório, antes de tentar analisar os diversos tipos de interacções que se têm diversificado, compreender que a atitude largamente  dominante é a do desinteresse mútuo, ou a do complexo de superioridade mal disfarçado.


A própria organização da vida musical tem em conta esta classificação, e os esforços de algumas instituições para criar espaços de intercâmbio e contacto embatem nas mais diversas resistências. Estou a pansar, por exemplo, em toda a polémica provocada pelos Festivais de Jazz em Agosto, organizados pelo Serviço ACARTE  da Fundação Gulbenkian, especialmente nos primeiros anos. Sempre que a programação propunha eclectismo ou pouca clareza na questão hamletiana do “ser ou não ser jazz”, um pequeno coro de protestos se levantava. O exemplo mais radical de eclectismo aconteceu com a junção no mesmo concerto dos pianistas Roger Woodward e Cecil Taylor. Para tornar o caso mais problemático ainda, o pianista australiano tocou peças de Xenakis e Stockhausen, compositores que recusam liminarmente qualquer contacto ou influência  da música afro-americana. A divisão existe, pois,  também ao nível das organizações de concertos: há os festivais de música contemporânea e as tentativas eclécticas deparam com dificuldades.


No próprio cerne das duas actividades musicais estão duas coisas diferentes. O músico de jazz encontra a sua individualidade, não na maneira como compõe, mas na maneira como toca, no som pessoal que consegue criar. É na relação física com o instrumento que se desenvolverá determinada concepção musical, muitas vezes intuitiva. Na música contemporânea, na linha da música erudita  europeia, a individuação realiza-se sobretudo pela escrita, pela “écriture”. Na fase conceptual mais extremista dos anos 70 falava-se de música para olhar e menos para ouvir. É óbvio que se trata de um contra-senso, mas que tem a virtualidade de acentuar essa importância do texto musical, da grafia.


Estamos portanto naquilo a que eu poderia chamar o primeiro nível de leitura: duas músicas diferentes e de difícil comunicação entre si. Mas, apesar desta primeira constatação, poder-se-á tentar encontrar alguns níveis de  “circulação”.



Cortar pedaços de civilização


Por exemplo, da música contemporânea para o jazz. Depois de 1960 e do aparecimento do free-jazz, alguns músicos americanos e muitos europeus evidenciaram claramente influências dos compositores do primeiro serialismo (Schoenberg, Webern, Berg) mas sobretudo do segundo. Falo das obras dos anos 50 de Boulez, Stockhausen e outros. Em que consistiu essa absorção? Convém fazer aqui um parêntesis para dizer que o jazz sempre foi uma música permeável. A sua própria origem se confunde com o fenómeno mais vasto da aculturação dos negros americanos face à cultura branca anglo-saxónica dominante, uma espécie de conúbio entre a memória da música africana, com as suas escalas pentatónicas  não-temperadas, e a realidade concreta dos instrumentos ocidentais, temperados. A blue note não é mais do que o esforço do músico negro americano para “dobrar” o instrumento aos seus hábitos auditivos ancestrais. A imagem do guitarrista de blues esticando a corda para obter uma nota entre o mi natural e o mi bemol é exemplar. Além disso, o processo de aprendizagem, de transmissão da herança do passado, foi no século vinte simultaneamente oral e tecnológico, isto é, processou-se através de um meio  tecnologicamente sofisticado: o gira-discos! Charlie Parker trazia consigo sempre discos de Lester Young, que ouvia permanentemente. A aprendizagem verificava-se desta forma sui-generis face à música erudita europeia: por cima da escrita!


Neste contexto, muitos músicos de free-jazz, motivados pelas razões contestatárias dessa época, marcada pelas lutas raciais nos EUA e pela guerra do Vietname, imitaram, de ouvido naturalmente, alguma da vanguarda dessa época. Penso que é impossível compreender o pianista Cecil Taylor dos anos 60 e 70 sem ouvir, por exemplo, a Segunda Sonata piano de  Pierre Boulez ou as primeiras Klavierstucke de Stockhausen. Em todo o caso esta passagem  que, como disse, se verificou auditivamente e não por um processo de análise de partituras  e compreensão de processos de composição ficou inevitavelmente  ao nível do vocabulário utilizado. Nada da sintaxe da música serial passou para a “nova música improvisada”. Reside aqui, a meu ver, a principal fraqueza desta corrente, herdeira dos heróis  do free-jazz: utiliza um vocabulário cromático, privilegia os intervalos típicos da música pós-weberniana, o trítono e a sétima maior ou, mais tarde, as “cascades” de acordes de Xenakis sem ultrapassar, ao nível da estrutura da improvisação, o grau primário da oposição tensão/distensão repetido “ad infinitum”.



A miragem


Por outro lado, nos anos 70, sofrendo o impacto inverso do jazz e da improvisação no ambiente intelectualmente  libertário do pré e do pós-Maio 68, no contexto, igualmente então “à la page”, da problemática da obra aberta, teorizada por Umberto Eco e levada à prática por compositores como os inevitáveis Boulez (Terceira Sonata, Domaines…) e Stockhausen (Klavierstuck XI), alguns músicos europeus tentaram reinventar a prática da improvisação, perdida na Europa quase desde o século XVIII. Em todo o caso, presos por uma formação conservatorial exclusivamente baseada na interpretação de música escrita, por isso completamente diversa da formação de um músico de jazz, habituado a pensar a improvisação dentro de uma estrutura de acordes sempre repetida, habituado a utilizar “patterns” melódicos para resolver determinadas situações harmónicas, estes músicos ligados à música contemporânea, fascinados pela miragem da improvisação total, falharam a sua tentativa restauracionista. A audição hoje de discos do grupo “New Phonic Art” ou das improvisações orientalizantes de Aus den Sieben Tagen de  Stockhausen resulta irremediavelmente datada. Mas  vejamos o que Boulez dizia em 1975:

“Les improvisations, et sourtout les improvisations de groupe où il y a ressonance entre les individus, ont toujours les mêmes courbes d’invention; excitation-repos-excitation-repos”. Mais adiante: “L’improvisation s’est manifesté dans diverses civilisations de la façon la plus explicite quand on avait affaire à des règles extrêmement précises  au départ, des régles apprises pendant très longtemps, et laissant le champ à une invention instantanée fondamentalement liée au geste. Le geste étant codifié, l’improvisation du dernier moment peut exister, elle est appuyée sur quelque chose. Cela s’observe dans les civilisations de l’Inde où les qualités et des règles de l’improvisation sont  extrêmement sèvéres; de même au Bali, où les schémas sont absolument fixes. L’improvisation n’est alors q’une espèce de variation sur un schéma fondamentale”. Algumas linhas mais à frente, a propósito do tipo de improvisação dos compositores eruditos europeus, afirma: “La mémoire ne joue alors que sur des critères, des clichés extrêmement banals; par exemple, notes répetées ou notes séparées  par des grands silences, excès d’activité dans  tous les coins, ou longues tenues pendant lesquelles, soi-disant, on médite sur la transformation du son, etc. Um jour, à coté de quelqu’un avec qui j’avais discuté du problème, je me suis amusé, en écoutant un groupe improviser, à décrire  progressivement tout se qui allait se passer: c’est très prévisible”…2


Luciano Berio, que sempre manifestou interesse por músicas exteriores à música “erudita”, quer nos seus  escritos quer nas suas obras, e que nunca teve as tendências dogmáticas que Boulez exprimiu, especialmente nos anos 50, aproxima-se consideravelmente do mesmo ponto de vista neste assunto:

“I really don’t believe that a “serious” musician improvising in a concert hall can articulate a discourse of a complexity and interest comparable to that of a baroque musician or even a jazz musician”.


“Even the improvisations of really well-integrated groups that bring together the very best instrumentalists, such as New Phonic Art, have a private character to them, precisely because they cannot, as improvisers, place themselves within a sufficiently wide and objective dimension of musical experience”.


“Jazz improvisation is another matter, because it is based on the rapid extraction of musical modules and instrumental gestures from the reservoir of memory, and it is also based on speed of reaction to one’s to one’s partner and to oneself - it’s somewhat similar to rapid reflexes involved in act of speech. Perhaps you could also consider jazz improvisation as a continous correction of little errors, a continuous adjusting of sights relative to a target that, by its very nature, is never perfectly clear  and defined. It’s significant that the pianist Thelonious Monk, unhappy with an improvisation that he had just finished, walked out with this splendid remark “I made the wrong mistakes”.


A opinião dos dois compositores sobre a improvisação total dos anos 70, é inequívoca, e Berio exprime admiravelmente a especificidade da improvisação jazzística.


As obras do mesmo período que melhor ilustram esse desejo de contacto entre diferentes áreas musicais foram talvez a ópera Die Soldaten do compositor  alemão Bernd Alois Zimmerman e a peça de Berio Laborintus II, as duas  curiosamente de 1965. 


A peça de Berio é um bom exemplo de música ecléctica: utiliza um grupo instrumental (17 instrumentalistas entre os quais dois bateristas de jazz), três vozes femininas, oito actores, um “speaker” (no disco o poeta e autor do texto, Edoardo Sanguineti), e banda magnética. Com uma enorme diversidade de meios Luciano Berio consegue realizar uma obra notável. O efeito das colagens é sobreposto por um discurso  musical coerente e feérico. Nas secções jazz os percussionistas, aos quais se pede “tempo jazz fast”, têm um discurso musical autónomo, um “musical layer” ao qual se sobrepõem outros simultaneamente.


O mesmo acontece no segundo acto da ópera de Zimmermann. O compositor utiliza uma série dodecafónica mas a organização da série tem em conta o fim a que se destina. O desenrolar linear da série permite linhas de contrabaixo pertinentes para uma concepção  clássica do jazz. Junto à indicação de tempo piu mosso aparece escrito  quasi cool; noutra parte do mesmo acto aparece quasi jazz Dynamik wie jazz-ublich. Tal como na peça de Berio, o grupo de jazz, que aparece em cena, é um dos vários  “layers” que se ouvem simultaneamente.


Zimmermann escreveu outras obras nas quais utiliza procedimentos similares  como o Concerto para Trompete, escrito para Manfred Schoof, ou Die Befristen. Num texto intitulado Reflexões sobre o Jazz, Zimmermann escreve: “ J’etais preoccupé par la question de savoir comment  on pouvait, d’un coté, laisser suffisamment d’espace libre à l’improvisation - idiome de tout jazzmen (qui préserve par la même son caractère particulier, du fait qu’il s’exprime en grande partie: jusqu’a l’autisme) - sans d’un autre coté perdre les rênes de la composition”. 4


Nos casos que acabei de escrever sumariamente os compositores manifestam a preocupação de permitir aos músicos de jazz a especificidade do seu jogo instrumental  habitual e procuram integrá-la nas suas concepções globais. A “réussite” inegável destas obras terá provavelmente  a ver com o rigor da construção, capaz de integrar diversas linguagens musicais sem por isso perder coerência ou verosimilhança. 


Em todo o caso, mais recentemente, o tipo de interacção entre as duas músicas mudou consideravelmente de carácter. A influência de determinados aspectos do jazz, não todos, faz-se sentir no interior da própria composição, como procurarei analisar.



Parâmetros


Comecemos pelo timbre. O compositor holandês Louis Andriessen, por exemplo nas obras De StaatDe Snelheid ou na ópera De Materie, de 1989, utiliza um efectivo instrumental que tem muito mais a ver com as Big Bands de Count Basie ou Stan Kenton do que com a orquestra  sinfónica típica do final do século XIX, a de Mahler, Bruckner ou do primeiro Schoenberg. Os instrumentos de corda quase desaparecem, grandes secções de metais e de saxofones e  a percussão em larga escala, constituem o  corpo sonoro principal.


Independentemente das notas escritas, que, aliás, evidenciam idênticas preocupações, o factor que primeiro  situa a audição longe da tradição sinfónica é a sonoridade global, o timbre novo da orquestra.


Na mesma ordem de ideias, a peça “Drachenkampf” do III acto da ópera Donnerstag aus Lich(1980)  de Stockhausen provoca, no primeiro momento, uma quase estupefacção: o trompete com surdina e os sintetizadores  são exactamente  a mesma instrumentação de alguns momentos dum concerto do último Miles Davis! Aqui também é o timbre que unifica  músicas que, de outros pontos de vista,  são muito diferentes.


Actualmente, o uso frequente de meios electrónicos sofisticados ou o recurso a material comercializado, mais acessível, por compositores menos favorecidos pelas instituições-gigantes como o IRCAM, tem trazido para a música contemporânea um determinado tipo de “som”, com o uso de altifalantes, de delays, reverberações, harmonizers, etc., que já são utilizados pelos grupos de jazz e de rock há vários anos. Se acrescentarmos a isto, a pouca disponibilidade das orquestras, prioritariamente ocupadas  com o reportório clássico-romântico, e por vezes pouco motivadas para a prática de música contemporânea, encontramos boas razões para o recurso a grupos fixos, que, em última análise, fazem lembrar o modelo dos grupos de jazz, como é o caso  do Steve Reich Ensamble, do Philip Glass Ensemble, mas também o caso dos músicos que realizam todos os concertos de Stockhausen, nos últimos anos. Duma certa forma o próprio Ensemble Intercontemporain pode considerar-se o grupo de Boulez.


Um aspecto que, nos anos cinquenta, contribuía para manter a separação e ainda hoje, se analisado com alguma profundidade, mostra ser mais um obstáculo, ou, se quisermos, um factor de identidade, do que um factor de proximidade, é o ritmo.


Uma das características principais do jazz é o tempo regular, pulsado. O swing consiste em colocar os valores rítmicos numa determinada relação com essa pulsação regular. Por isso a escrita usada hoje em dia  no jazz tem  em conta algumas convenções porque, de facto, um grupo de colcheias deve ser tocado  com uma certa irregularidade próxima da tercina irregular ( ). Ora, o tempo regular foi um dos aspectos mais atacados na teoria e na prática pelos compositores do modernismo. Corresponderia ao acorde perfeito em termos rítmicos. Havia por isso uma incompatibilidade entre essa característica  fundamental do jazz e o desejo de descontinuidade  rítmica permanente dos compositores de vanguarda. Só os minimalistas iriam voltar a utilizar a pulsação regular como base das suas estruturas rítmicas e nos últimos anos é possível encontrar partituras novamente com secções pulsadas como na obra de Pierre Boulez Messagesquisse de 1976. A última fase de Ligeti vai mais longe no interesse por estruturas rítmicas complexas dentro duma pulsação de base, nomeadamente nos Estudos para piano de 1985 e no Trio de 1982, obras onde o uso da hemiola que resulta da divisão da unidade de base de oito tempos em 3+2+3 ou 3+3+2, etc., ressuscita por momentos a velha síncopa jazzística. Nas palávras do próprio Ligeti “the piano draws indirecty from the jazz-piano tradition”. 5


O jazz ocupou um lugar importante na crítica que Steve Reich fez ao academismo universitário americano dos anos sessenta. Para Reich, os estudantes destas instituições produziam música que, apesar da enorme complexidade dos processos utilizados, ou por causa deles, nunca passava da primeira audição, isto no caso de chegar a ser tocada. Esses processos, teorizados por Milton Babbit e George Perle, que afinal só servem para assegurar a complementaridade cromática permanente, 6 e aquilo a que Reich chama “paper music” são postos em confronto com a prática de John Coltrane  que, com uma ou duas harmonias, podia tocar durante meia hora: “It was magnificient”7.



American way


Um dos últimos números da revista Perspectives of New Music publica uma série de artigos intitulados Being a Composer in America. O compositor William Thomas Mckinley diz o seguinte: 

“I remember one afternoon in the late sixties, talking with Iannis Xenakis about American Music. I was appalled to learn that he liked only the most commercial forms. I asked: “Wat about jazz?” He said he didn’t like or know much about jazz. Since that time I have been shocked to find that many other composers of his reputation don’t like  jazz. They seen to gravite towards the lesser forms, such as cheap rock and pop, the MacDonald’s Hamburguer os American Music. These are very sophisticated people and I think they are  afraid of jazz; jazz is emotional and passionate - it represents an irrational world that many composers cannot somehow synthesize and blend into their own music. On the other hand some composers, particulary american, do nor have that problem; they are open to jazz because it is here, it is  not imported and you can like it without any prejudice or intellectual strings or pretense attached”. 8


Fréderic Rzewski diz numa revista francesa: “Coment pouvez vous être compositeur aux Etats-Unis et ne pas être influencé par le jazz?” 9


Parece portanto adquirido que, nos Estados Unidos, os compositores consideram o jazz como algo de quase intrínseco à sua actividade, algo que pertence à sua cultura e se impõe naturalmente. Já vimos de que forma a música de Coltrane serviu a Steve Reich para ajudar a problematizar o tipo de ensino das universidades americanas, os seus resultados, e para fundamentar algumas das suas escolhas fundamentais - a existência de um centro tonal e de uma pulsação regular.


Mas nem sempre esta proximidade produz os mesmos resultados. Elliot Carter, num artigo intitulado A Base Rítmica da Música Americana, diz o seguinte sobre a situação nos anos 20 e 30: “Finalement, le jazz eut de loin plus d’effet à l’étranger que chez nous. La relation du compositeur américan est en fait complètement différent de ce qu’on pourrait attendre. Entendue constamment à chaque coin de  rue, cette musique a perdu sa fraicheur originale; les techniques sont devenues défraîchies, les exécutions routinières et ennuyeuses. C’est peut être pour ces raisons que la plupart des compositeurs ont évité d’utiliser le langage du jazz dans leur musique; et aussi parce que les musiciens d’orchestre ne jouent souvent pas bien le jazz, et par leurs conditions de vie, ils ne peuvent se permettre les répétitions que nécessite le bon jazz”. 10


Este texto merece duas precisões; primeiro trata-se de uma opinião sobre uma época consideravelmente  diferente da actual, na qual o jazz era mesmo popular. A orquestra de Duke Ellington actuava em clubs e as pessoas dançavam com o swing. Por  outro lado, acentua a questão da especificidade da maneira de tocar dos músicos de jazz que já vimos ser praticamente intransmissível.  Mas no mesmo texto Carter diz também: “Mais les executants de jazz ne prennent seulement des libertés avec la notation, ils improvisent aussi tellement librement que leur parties possèdent un rubato expressif, rallentissant et accelerant pendant que la section rythmique garde solidement la pulsation”. 11


A última parte do texto remete-nos para uma parte importante da técnica de Elliot Carter que consiste na sobreposição de linhas rítmicas diferentes, com métricas e tempi diferentes, e para o seu próprio conceito de “metric modulation”.


É possível encontar técnicas similares, igualmente derivadas da polirritmia jazzística, no compositor longos anos ignorado, Colin Nancarrow, e nos seus peculiares Estudos para “player piano”, que atingem uma tal complexidade rítmica que só uma máquina os pode realizar.


Num compositor da jovem geração, Tod Machover, é possível encontar, como programa estético o que ele próprio qualifica  de unificação dos estilos. Afirma que nos E.U.  o verdadeiro combate se trava  entre todas as músicas de qualidade (moderna, clássica, jazz, rock, folk) - Machover fala de Reich, de Laurie Anderson, de Ornette Coleman, de Frank Zappa - e a medíocre música de consumo  de massas  à qual a grande maioria do país está exposto.  Cita como bom indício “ a ópera X de Anthony Davies, reconhecido como um dos maiores improvisadores do jazz actual, e o jovem compositor nova-iorquino, inspirado na vida do militante negro Malcolm X”. O jornal Boston Globe dizia, de acordo com o texto  de Machover”:”L’un des rares opéras américains nés bien vivant, gigotant et criant, plein de feu et de colère, de conviction et d’intelligence  de vitalité musicale  et théâtrale”.12

Esta brevíssima amostragem de textos  e compositores americanos parece-me demonstrar q ue há uma diferença entre o europeu, submetido  a uma pesada herança cultural, o que terá as suas vantagens, e o americano sempre mais apto a aproveitar os “objets trouvés” onde quer que eles se encontrem. Isto será provavelmente verdade, mas não nos deve impedir  de admitir que os mais dogmáticos defensores do mais rígido serialismo foram Milton Babbitt e os seus seguidores. Por outro lado, o jazz atravessa hoje um período de revivalismo intenso  e muitos músicos saídos das universidades, agora com departamentos de jazz, preferiram estudar e dominar um idioma já formado, o be-bop e os seus sucedâneos, do que avançar  pelos terrenos ingratos  da invenção, como fizeram no passado Ornette, Coltrane, Miles. Ao ouvirmos hoje um disco como Bitches Brewde Miles Davis  (1969), ficamos com uma ideia do retraimento criativo actual. Deste modo, a unificação dos estilos de Machover  tem de vencer mais um obstáculo. 



Os novos


Os compositores que têm hoje mais de 50 ou 60 anos, quando utilizavam determinados elementos do jazz, faziam-no do exterior. Uma determinada secção da peça era invadida por uma expressão que no fim  de contas lhe era estranha, como colagem ou sobreposição.


Os compositores da nova geração, quando partilham duma perspectiva aberta, o que nem sempre acontece, fazem-no de outra maneira, no interior da própria forma de compor. A liberdade que se procura agora passa pelo facto de se ter nascido em plena era do disco, da música pop, do jazz, dos meios audiovisuais, passa pela sonoridade dos meios utilizados, pelo gosto do instrumentista (o gesto de Pat Metheny em Electric Counterpoint de Steve Reich), pelo uso de computadores, tanto no acto de compor como no próprio concerto. A importância dos meios electrónicos será no futuro definitiva. Como dizia o visionário Stockhausen “imagino alguns solistas no palco e o som global produzido quase totalmente por meios electrónicos”.13



Conclusão provisória


I’m a jazz musician!

I’m used to play music that nobody wants to hear!

Brandford Marsalis 14


Finalmente, penso que este texto terá demonstrado que os mais diversos géneros musicais têm existido. Da recusa de qualquer interacção à tentativa falhada, da apropriação sem sentido à síntese orgânica que se vislumbra…


Em todo o caso, quer na interacção, quer em divórcio completo, há duas coisas que unem o jazz e a música contemporânea: o seu carácter minoritário face ao domínio das músicas históricas, principalmente a do período classico-romântico, por outro lado; e, em segundo lugar, o facto de enfrentarem perigos similares: o do mercado que impõe as suas normas, a sua normalização, as suas categorias e os seus monopólios, e o da intervenção estatal ou de instituições que facilmente criam comissões de censura ou mecanismos de bloqueamento.



Amsterdam, Dezembro de 1989


 

 

 

 

 

1 Olivier Messiaen, Musique et Couleur, Nouveaux entretiens avec Claude Samuel, Belfond 1986, pág. 213.

2 Pierre Boulez, Par volonté et par hasard, entretiens avec Célestin Deliège, tel quel 1975, pág. 150 e segs.

3 Luciano Berio, Two interviews, Boyars Publisher 1981, pág. 82 e segs.

4 Bernd Alois Zimmermann, Reflexions sur le jazz in Contrechamps nr. 5, Nov. 1985, pág 60 e segs.

5 Gyorgy Ligeti, notas sobre o Trio para violino, trompa e piano no C.D. Erato 75555, 1989.

6 Steve Reich, entrevista na revista Electronic Music and Musicians, Março 1986, pág. 63 e segs.

7 Cf. Pierre Boulez, Le systeme et l’idéeIn Inharmoniques nr. 1, Dezembro 1986, pág.62 e segs.

8 In Perspectives of New Music, vol. 26, nr. 2, 1988, pág. 257

9 In Contrechamps, nr. 6, Musiques Nord Americaines, pág. 104.

10 Ibidem, pág. 105 e segs.

11 Ibidem, pág. 107 e 108.

12 Tod Machover, Être  compositeur  aujourd’hui, in Inharmoniques, nr. 1, Dezembro 1986, pág. 222 e segs.

13 Citado numa conferência no IRCAM em Paris, em Novembro de 1989 por Michael Jarrell.

14 Citado por Brandford Marsalis num vídeo comercial sobre Sting.