01 de junho, 2025
Memórias
"Atrito" e na Rua do Ataíde (ESML)
Estive agora a tentar lembrar-me da palavra que Carlos Caires tinha usado quando na SPA na entrega do Prémio Pedro Osório se referiu ao que eu tinha provocado quando fui dar aulas para a Escola Superior de Música de Lisboa em 1991 onde ensinei até 2019. Depois de algum esforço lembrei-me: foi "atrito". E a maneira como a definiu foi ainda melhor: atrito era aquilo que provocava agitação nas águas talvez demasiado paradas, aquilo que tinha provocado renovação e questionamento, finalmente "movimento". Acho que o seu discurso lá devia ser passado a escrito, para poder ser lido. Ele próprio tem a sua dose de atrito. Já Luís Tinoco me tinha perguntado na entrevista para o documentário de Adriana Romero se "eu tinha consciência da maneira com a minha chegada tinha sido vista pelos alunos, como ele na altura, nos anos 90". Direi que a minha consciência era alguma, decorrente do que alguns deles, alunos, me iam dizendo, mas é sempre melhor serem outros a dizê-lo. Corremos sempre o risco de termos um ponto de vista heróico do nosso próprio papel, apesar de isso ser sempre temperado pelas dúvidas, o cerne daquilo que provocava o "atrito". Mas hoje, lendo o artigo de Ricardo Rocha no Público sobre o conjunto de jovens compositores portugueses no World New Music Days, tive quase uma surpresa ao encontrar lá uma série de nomes de alunos que passaram pelas minhas salas nos meus últimos anos lá. Mariana Vieira, Pedro Lima, Luis Salgueiro e João Caldas, a que podia e devia acrescentar uma enorme série deles como Sara Ross, Carmen Pomet, Hugo Vasco Reis, estes três últimos nos mesmos anos de uma intensidade extraordinária.
O que pude ler que diz João Caldas "a partitura para mim era um pouco um empecilho. Isso tornou-me um dissidente no meio do meu mundo "académico" e "a partitura impede [compositor e intérprete] de ouvir realmente", frases nas quais sinto a sua inquietação particular, que lhe é própria, mas eventualmente também o resultado das sementes que podem lhe ter sido transmitidas naquelas aulas. Talvez mas não posso saber. O que sei é que ao ler a frase "A atitude de João Caldas é, no fundo, uma recusa do "delírio" a que os compositores são sujeitos, numa demanda solitária de criação sobre o vazio, que apenas se materializa na correria dos ensaios antes da estreia, oferecendo pouco tempo para desfrutar da descoberta do som em conjunto" sinto: ah, como bem percebemos esse delírio, essa correria...
E nestas frases toma corpo "uma espécie de retribuição" da enorme carga de inquietação que eu terei depositado naquelas almas, sendo que a parte mais importante será sem dúvida aquilo que a própria vida de cada um lhes terá provocado ou suscitado como dúvidas, angústias, entremeadas de alguns momentos de prazer e encantamento, que certamente habita em todos eles, a par com a primeira frase do artigo: "A vida de compositor não se recomenda." e depois "Mas eles estão aí: resistindo".
Nada que não saibamos todos, cada um à sua maneira...
[A nossa escola ESML era, e deve continuar a ser, aquela mistura de maravilhas e algumas torturas que sempre terá sido...Tenho muitas saudades da Rua do Ataíde.... olhava para a direita e via o rio Tejo, o tal mais belo do que o da minha aldeia...]