10 de maio, 2025
Programas
CD Monodia 19951
EMI Classics (agora Warner.CD Monodia
algumas notas sobre as peças e a sua geografia
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este disco abrange um conjunto de peças escritas num largo período de tempo.
passo a enumerar as datas e os locais
três fragmentos porto 1986
mirrors amesterdão 1988/89
poetica dell’estinzione amesterdão 1989/90
monodia quasi un requiem lisboa 1993
três quadros para almada lisboa 1994
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três fragmentos foi escrita no porto em 1985/6 e revista em 1994.
a minha preocupação na altura prendia-se com o seguinte problema: como compôr música utilizando séries de doze sons, ou seja, utilizando um vocabulário predominantemente cromático , evitando a esfera de intervalos típicos da música post-serial? utilizei uma técnica de interpolação de intervalos fixos entre cada nota da série - 2ªmaior na I e 3ª menor na II. penso que o intervalo escolhido é mais importante para a definição do carácter da peça do que a série. repeti fragmentos à vontade, nisso stravinsky paira por cima. a III é uma espécie de scherzo construído literalmente em torno de sol/fá# central.
mirrors para piano e poetica dell’estinzione para flauta e quarteto de cordas foram compostas em amesterdão enquanto estudava com klaas de vries. os títulos noutras línguas derivam dessa circunstância.
as minhas preocupações continuavam a ser técnicas no sentido que referi anteriormente. em mirrors I utilizei pela última vez uma série dodecafónica. mas quanta indisciplina!
e o gesto musical é muito pouco alemão.
ich bin kein deutscher
em mirros II , talvez a peça mais estrita que escrevi até hoje, usei uma “color” de 10 acordes e uma “talea” de 8 durações, três planos de registo e três velocidades diferentes de desenrolar do mesmo material.
merci monsieur
na terceira peça, igualmente estrita, mas com uma das três vozes livre, uso escalas octatónicas que conhecia bem do jazz, uma poliritmia de acentuações dentro da pulsação regular que fui capaz de usar pela primeira vez. falaremos...
gyorgy, gyorgy
mais tarde, ainda na holanda, compus poetica dell’estinsione secondo mikhail serguieievitch. seis notas como ponto de partida, um perfume de tons inteiros permanente e ainda reflexão, ou melhor, esforço de reflexão sobre a linguagem musical , o seu vocabulário e as condicionantes históricas do material.
staline est mort
depois, bom , depois quando em 1990 ouvi o compositor alemão wolfgang rihm dizer em bruxelas “ quando começo uma peça não sei quantas partes vai ter, quanto tempo vai demorar, em quantas secções se vai dividir ” e coisas parecidas por aí fora fiquei num estado de paralisia mental indescritível. percebi anos mais tarde que tinha engolido uma bomba de efeito retardado.
a força do inimigo era grande. ele tinha atestado as suas baterias no campo de batalha em boas posições. a política, como a música eram científicas, as respostas estavam já dadas, bastava procurar bem nos livros.
não era bem assim
as coisas mudaram. as duas últimas peças escritas em lisboa em 1993 e 1994 e ainda nocturno/diurno para sexteto de cordas, obra não incluída neste disco marcam alguns passos naquilo que sinto como reconquista progressiva de elementos da linguagem musical que eu conhecia mas não utilizava na escrita por razões ideológicas. tive de montar uma “máquina de guerra”- com alguma ajuda-porque não há maior obstáculo do que aquele que se instala dentro de nós.
em monodia - quasi un requiem uso uma simples sucessão melódica e um gesto musical lírico e consonante- mas que prazer nestas palavras- como ponto de partida da peça. ela é excessiva, tensa, às vezes quase insuportável. escrevi uma pequena teoria do grito mas perdi o papel...
a ideia era que um grito é tanto mais estridente quanto mais silencioso se exprime, permanecendo ainda grito . o silêncio pode ser o mais violento dos protestos. na nossa civilização audio-visual o silencio é sinal de avaria, de não funcionamento.
quis fazer uma peça sobre a morte, sobre o avanço da barbarie, às vezes sobre aparência até bem elegante e divertida. mas como fazer uma peça sobre a barbárie sem gritar alto, ao ponto de não se ouvir? estas ideias não estão na peça. estavam em mim quando a compunha. mesmo assim talvez se ouçam...
em três quadros para almada voltei a usar uma melodia como ponto de partida e não usei outra coisa em toda a peça senão derivações das 4 notas iniciais, e implicações harmónicas, alias desagradáveis, do primeiro intervalo, 2ª menor. em “operário observando a máquina avariada” essa figura existe em praticamente todos os compassos, mas os gestos são outros.
.........julgo que percebi que a principal tarefa do compositor não reside na escolha de um material “politicamente correcto” a validade da obra estando assegurada.
não acredito nisso. que outros acreditem não me incomoda. espero não incomodar ninguém por não acreditar.
além disso usei ritmos triviais. hoje todos os ritmos são triviais.
é tão trivial uma colcheia com ponto semicolcheia como uma septina da qual só se toca a segunda, a terceira e a sexta! o vocabulário é neutro. a gramática é que manifesta as condicionantes históricas e geográficas.
há música contemporânea em angola hoje? claro que há, mas outra! E em darmstad ou pequim? Sim, sim , mas sempre outras...
psicanálise de um “cluster”
nos três quadros para almada há um elemento singular que aparece nas três peças, um cluster no registo grave do piano. posso dar-lhe um nome – o medo. de que medo se trata? do medo da rapariga de não encontrar sequer o desejo no olhar dos rapazes? do operário face ao desmprego mais que provável se a máquina se avariar de vez? ou do velhote que depois do sonho da força juvenil acorda face ao medo mais primordial de todos: o da morte? ou do meu próprio medo, afinal o único verdadeiro – mas um medo imaginado será menos real que um verdadeiro? – que reune, vive e realiza os três num só.
CD EMI Classics editado com o apoio de Lisboa 94
novembro 94- CD EMI Classics 1995 - depois Warner
António Pinho Vargas
Monodia EMI Classics - Warner Foto Isabel Pinto